A modernidade tem sido, para a ciência e para as nossas sociedades, um projecto de eliminação de ambivalências, a clarificar diferenças, a separar conceptualmente partes da realidade, a interpretá-las como polaridades que ganham a forma de oposições, quase sempre a forçar-nos a tomar partido por uma delas. O grande pensador social polaco Zygmunt Bauman deu bem conta desta tendência em Modernidade e Ambivalência.

Hoje, a racionalidade e a política vivem desta extinção da ambivalência, como se assim a verdade levasse a melhor sobre o erro. Contudo, nesta verdade vai colado um erro de outra natureza. Eliminamos as ambivalências quando importaria, sobretudo, habitá-las. Podiam ser outras, mas penso em três ambivalências, que se relacionam entre si, na esfera política.

A oposição entre esquerda e direita a propósito de serem, ou não, revolucionárias ou conservadoras. A oposição entre o local e o global a propósito de serem, ou não, emancipadores. E a preferência por termos, ou não, fronteiras nos territórios que habitamos. Em todas, a questão do sentido da acção política não se resolve contra a ambivalência, como se faz crer tantas vezes, mas no seu interior, sem forma de contornar a mistura e a possibilidade de nos encontrarmos onde não pensaríamos estar.

Quanto à esquerda e à direita, e apesar das simplificações que confortam as perspectivas de uns e de outros, não é verdade que não haja direita revolucionária, desejosa de uma transformação estrutural súbita da sociedade, das relações de produção e das relações de poder. Certo fascismo ambicionou a revolução. E certo fascismo acreditou no progresso.

Mesmo em Portugal, na história do seu regime ditatorial, houve, antes de inflectir para o tradicionalismo como fonte da sua legitimidade, uma pretensão de desenvolvimento e modernidade que se exprimia, por exemplo, nas instituições ligadas às obras públicas. Não era democracia, não era liberdade, mas não era uma direita virada para o passado.

Por outro lado, não faltam expressões conservadoras dos movimentos de esquerda democrática. Aliás, nos tempos que correm, a organização política da esquerda parece mais dependente da nostalgia de uma narrativa de transformação social passada do que da transformação dos próprios modos como se imagina uma transformação social. O imaginário político é de transformação, mas a imaginação política é conservadora.

A esquerda precisa de se fiar menos na organização do sentido que se fez no passado e habitar a ambivalência, ou seja, não descansar nas polaridades algum dia feitas e que a fazem ausentar-se da experiência concreta do real pleno, com todas as suas espessuras. Sobretudo a esquerda que se quer transformadora deve imaginar-se a começar do princípio quando encara os ideais que a movem e as escolhas que fazem a sua acção política.

A diferença entre o local e o global é um importante exemplo desta necessidade de habitar a ambivalência. O local resiste à globalização insensível que devora todas as distâncias e nisto há uma potência de liberdade. Mas o local também pode ser o lugar do fechamento que exclui e se entrincheira nas ideias de autenticidade e identidade, na verdade expressão de uma potência de opressão dos outros que a globalização traz.

Aqui perto, Lisboa vive esta tensão entre ser uma efervescência de lugares nascentes, convívio de espaços e tempos, e o direito a permanecer, uma certa imunidade ao que nos atravessa. Habitar a ambivalência não é ser confuso, mas exercitar a imaginação política para que seja possível, ao mesmo tempo, rendas estáveis e suportáveis e uma cidade cosmopolita amiga da experiência do turismo. Se não parece possível, é porque está a faltar o mais importante: imaginação política no lugar de gestão.

O terceiro exemplo de ambivalência são as fronteiras. Podem ser a realidade que barra a passagem, como podem ser a realidade que proporciona a experiência da passagem. A modernidade resolveria a ambivalência limpando o significado do conceito de fronteira do que não se quer ler nele, ou deixando-o cair, presumindo que o que não se quer domina a sua significação. Mas a luta não está verdadeiramente na significação das palavras, muito menos em lavá-las até nada transpirarem, mas na realidade por elas significadas. Não é a ideia de fronteira, mas cada fronteira que atravessamos o lugar próprio do sentido de uma acção política. Um mundo sem fronteiras de circulação de capitais e de bens de consumo é tão devastador quanto um mundo de fronteiras fechadas à circulação de pessoas.

Nenhuma das duas formulações serve. As distâncias e as proximidades devem constituir-se como relações e não meros obstáculos a superar. E com a fronteira acontece o mesmo. Não deve ser entendida como um obstáculo, que uns apreciarão e outros abjurarão, resumida a discussão a haver ou não fronteira, mas como um relacionamento com a distância, e que é também uma relação com a proximidade. Habitar fronteiras é o regime da transformação, convite à passagem, por que nos realizamos individual e colectivamente. É também a forma concreta de uma ecologia da distância e da proximidade.

As ambivalências fazem falta. Estas e outras. Pressupõem a separação feita pelo trabalho conceptual, mas sem perder o chão que precedeu a separação. Em vez de separarem sem desligar, ligam apesar da separação. Separam, mas não desligam. E, assim, a guardarem uma comunicação sempre possível entre as partes separadas, fazem regressar a modernidade e as suas palavras lavadas ao chão.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.