A Convenção Nacional do Ensino Superior, que decorreu na semana passada em Lisboa, foi monopolizada pela ideia colocada em cima da mesa pelo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, de que as propinas nas licenciaturas nas instituições superior públicas devem ser abolidas.
Esta visão foi aplaudida pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que defendeu a medida como forma de conferir prioridade ao setor no seio da sociedade portuguesa, assegurando uma maior atratividade do ensino superior. 20 anos volvidos, Marcelo Rebelo de Sousa deu corpo à ideia de que “só não muda de pensamento quem nunca os possui”, uma vez que havia sido ele que, na qualidade de então líder do PSD, viabilizou a proposta de lei do Governo de António Guterres de aumento das propinas.
No sítio da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) explica como uma pessoa pode ter duas opiniões sobre a mesma temática, uma na qualidade de cidadão, outra na de Presidente: “enquanto cidadão, sempre foi favorável à existência de um regime de propinas, considerando que os montantes deviam refletir a capacidade económica dos que as pagavam, de forma direta ou com recurso a esquemas de ação social escolar”.
Como Presidente dos portugueses, julga que “a experiência destes últimos vinte anos mostra que o país não recuperou o seu atraso nas qualificações como seria desejável, daí a necessidade de se enfrentar a questão de estrangulamento na passagem do ensino secundário para o ensino superior, entendendo ser indispensável repensar o acesso e o financiamento do ensino superior”. Em suma, temos um MRS cidadão, favorável às propinas, e um MRS Presidente, defensor da sua abolição.
Mas, independentemente das opiniões de tão ilustres cidadãos, como são, inquestionavelmente, o Presidente da República e o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, o que importa discutir é a bondade da medida e a justiça da mesma.
Há 20 anos, o então ministro da Educação socialista Eduardo Marçal Grilo conseguiu fazer vingar o regime de propinas como o conhecemos, desenhando o atual modelo de financiamento do ensino superior, segundo o qual um estudante do ensino superior público em formação inicial (licenciaturas e mestrados integrados) pagava até ao ano letivo 2018/2019 uma propina que podia variar, por decisão de cada instituição de ensino superior, entre os €689 e €1.068, ou seja, entre €1,89 e €2,93 por dia.
A primeira machadada no sistema então instituído foi dada pelo atual Governo, também ele socialista, no Orçamento do Estado para 2019, ao baixar o valor da propina máxima em €212,00, ou seja, €0,58 por dia. Quem tem experiência nestas áreas, percebeu de imediato que esta era apenas a primeira pedra em direção ao sistema apadrinhado pela ala esquerda do PS, pelo BE e pelo PCP, com o inesperado beneplácito do Presidente da República.
Mas, o que importa analisar é se a medida trará os benefícios que vêm sendo apregoados e se a mesma é socialmente justa. Comecemos pela primeira questão.
Advogam os defensores da gratuitidade do ensino superior público que as propinas constituem um entrave ao acesso ao ensino superior por parte de uma percentagem significativa de estudantes, sobretudo da classe média, os quais não dispõem dos recursos financeiros necessários para permitir que os seus filhos ingressem e se consigam manter numa instituição de ensino superior.
Assim, segundo estes, os mais ricos podem estudar, porque têm capacidade financeira para o fazer, os mais carenciados são apoiados pela ação social, mas a classe média encontra-se num limbo do qual não consegue sair, pois nem é suficientemente abonada para suportar os custos das propinas, nem é suficientemente carenciada para beneficiar do apoio que o Estado concede aos mais pobres.
Isto faz com que, de acordo com os “abolicionistas”, os filhos da classe média não consigam estudar no ensino superior, o que se alterará de forma radical com a supressão das propinas. A gratuitidade contribuirá, assim, para que Portugal possa recuperar o atraso europeu que manifesta ao nível das metas de diplomados do ensino superior, tornando-se um país mais avançado e mais competitivo.
É este o argumento que parece convencer o Presidente da República sobre a bondade de eliminar as propinas, ao afirmar que isso contribuiria para “o objetivo nacional de aumentar substancialmente a qualificação dos portugueses, como fator estratégico do nosso desenvolvimento futuro, à semelhança do que se verifica nos mais desenvolvidos países europeus”.
Mas será que é mesmo assim? Devemos acreditar que uma percentagem significativa dos nossos estudantes, sobretudo oriundos da classe média, não ingressa no ensino superior porque não consegue suportar €856,00 por ano, €71,00 por mês, €2,35 por dia? Será que é este o fator decisivo para o afastamento de tantos jovens do ensino superior? Custa-nos sinceramente a crer.
Muito mais do que estes valores suportam habitualmente os jovens e as suas famílias em produtos e serviços supérfluos ou pelo menos de menor importância do que o ensino superior. E mais do que as propinas, são outros fatores que “encarecem” a frequência do ensino superior, como a inexistência de um número suficiente de camas em residências a preços abaixo do mercado, o custo das refeições e do material escolar. Mas, acima de tudo, quando alguém opta por não investir o seu tempo e o seu dinheiro no ensino superior fá-lo porque, alternativamente, poderá obter um rendimento proveniente de uma atividade profissional.
Mais do que aquilo que tem que pagar pelo ensino superior, que é manifestamente pouco, o que se pondera é aquilo que se deixa de auferir pela impossibilidade de, no imediato, se dispor do tempo indispensável para ingressar desde logo no mercado de trabalho, ainda que sacrificando a possibilidade de um dia mais tarde auferir uma remuneração mais elevada, fruto das habilitações adquiridas. É aquilo que os economistas chamam custo de oportunidade.
Se um jovem que termina o ensino secundário não ingressa no ensino superior, mais do que os €71,00 que iria ter que pagar por mês para frequentar uma instituição de ensino superior público, o que pensa é nos €600,00 ou €700,00 que deixará de auferir por não ter possibilidade de, em simultâneo, arranjar uma ocupação profissional. E este problema não se resolve com a eliminação das propinas. No limite, para “obrigar” estes jovens a frequentar o ensino superior teríamos que começar, não só a isentá-los do pagamento de propinas, mas a remunerá-los para estudarem.
Eliminar as propinas é, pois, acabar com uma das componentes essenciais do financiamento do ensino superior: o esforço dos estudantes e das respetivas famílias, coresponsabilizando-os na sua valorização pessoal, que permitirá aos diplomados, e não só ao país e à sociedade, dispor de meios acrescidos para competirem num mundo cada vez mais global e de auferirem melhores remunerações no futuro. Se o benefício, para além do país, é também pessoal, deverá claramente haver um copagamento por parte dos estudantes, um investimento que lhes permitirá adquirirem ferramentas mais adequadas para enfrentarem o mercado de trabalho.
Resta-nos verificar se a abolição das propinas é uma medida socialmente justa. E aqui a resposta deveria ser quase unânime, esperando-se que fossem essencialmente os partidos mais à esquerda, que se arrogam de paladinos dos mais desfavorecidos, que mais se opusessem à eliminação das propinas, quando, estranhamente, são eles que ideologicamente mais a peticionam.
A supressão das propinas não significa, obviamente, que o ensino superior público passará a não ter custos, apenas que a forma de o financiar será diferente. Se os estudantes do ensino superior público deixarem de pagar propinas, terá que ser o Orçamento do Estado a suportar essa despesa, uma vez que os professores e os demais funcionários das universidades e politécnicos não deixarão de auferir as suas remunerações, que as instalações necessitarão de luz, água, limpeza e arranjos, que serão precisas verbas para a investigação, etc., etc.
A discussão não é, pois, se o ensino superior público passará ou não a ser gratuito, mas, sim, quem financiará o mesmo; se apenas os estudantes, se os estudantes e o Estado ou se apenas o Estado, o mesmo é dizer, os contribuintes, através dos seus impostos.
Ora, não há medida socialmente mais injusta do que abolir as propinas, fazendo com que sejam os contribuintes, no seu todo, a financiar os custos do ensino de apenas alguns, muitos dos quais bem mais abonados do que aqueles que lhes pagam para estudarem. Só aparentemente é que a abolição das propinas é uma medida de carácter social. Na prática, ela acaba por prejudicar as famílias mais carenciadas, uma vez que não pagando os estudantes propinas, teremos que ser todos nós, através dos nossos impostos, a suportar este custo.
A alternativa, socialmente muito mais correta, seria aumentar a ação social escolar dos atuais 130 milhões de euros para o triplo, fazendo com que muito mais famílias da classe média/média baixa pudessem receber um apoio do Estado para que os seus filhos frequentassem o ensino superior.
Os cerca de 200 a 250 milhões de euros que o Orçamento do Estado irá ter que passar a “despejar” a mais nas instituições de ensino superior públicas em caso de eliminação das propinas, seriam muito melhor gastos se se pudessem selecionar os seus destinatários através do critério económico, não se optando pelo populismo e demagogia de anunciar uma medida universalista e injusta.
Se estou claramente disponível para subsidiar com os meus impostos os estudos de todos aqueles que não têm capacidade económica para o fazer de forma autónoma, suportando propinas e demais encargos, manifesto a minha profunda repulsa sobre a possibilidade de ter que contribuir financeiramente para pagar as propinas dos filhos das famílias mais ricas do nosso país. Com o sistema que se pretende no futuro implementar, teremos todos, mesmo os mais pobres, que pagar os estudos dos filhos dos Amorins, dos Soares dos Santos, dos Mellos, dos Queiroz Pereira, só para dar alguns exemplos, caso estes optem por frequentar uma instituição de ensino superior pública portuguesa.
A abolição das propinas trará consigo um outro risco significativo: ao reduzir consideravelmente as receitas próprias das instituições de ensino superior públicas, estas passarão a depender, ainda mais, das transferências do Orçamento do Estado, ficando numa dependência quase total e muito perniciosa do poder político, que, num momento de maior aperto económico, não hesitará em cortar a eito no financiamento destas instituições, deixando-os sem capacidade para realizar de modo cabal a sua missão.