O mundo está em guerra. Neste instante chovem em Israel mísseis iranianos, Israel bombardeou diversos alvos no Líbano, tendo resultado na morte de dirigentes de topo do Hezbolah, incluindo do seu líder histórico, Hassan Nasrallah, iniciando, em simultâneo, uma incursão terrestre no Sul deste país. Em Gaza, continua a campanha de eliminação do Hamas, na sequência do brutal ataque de 7 de outubro de 2023, a qual tem resultado na perda de centenas de milhar de vidas humanas e na destruição daquele exíguo território, já tão fustigado.

Noutra geografia, a Rússia mantém a ocupação de vastos territórios no Donbass, sob domínio militar ilegal, enquanto as forças armadas ucranianas, com o apoio ocidental possível, resistem heroicamente, e se aventuram em território russo, mais para fragilizar a moral das suas tropas do que para afirmar uma qualquer conquista armada.

Nos Estados Unidos decorre a mais hostil campanha eleitoral de que há memória, com ataques pessoais e campanhas de descredibilização. Qualquer que seja o resultado ou o vencedor, veremos uma sociedade americana profundamente dividida, com todas as consequências que isso representa para a política interna e externa da maior potência mundial.

Neste contexto, surge a pergunta: para que serve as Nações Unidas?

Na semana passada estive em Nova Iorque, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, e da “Cimeira do Futuro”, que reuniu centenas de chefes de Estado e de Governo.

Ali foram proferidos discursos grandiloquentes e promessas de paz e reconciliação.

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, dirigiu-se à Assembleia Geral no mesmo dia em que o seu país bombardeava o Líbano. Neste discurso afirmou que estava ali para “esclarecer as coisas”. No mesmo discurso apelou a que não se permitisse que Nasrallah arrastasse o Líbano para o abismo, referindo o nome do seu alvo, poucas horas antes de este ser morto.

Tanto o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), órgão máximo jurisdicional das Nações Unidas, quanto o Tribunal Penal Internacional (TPI) já se pronunciaram sobre os dois conflitos.

O TIJ afirmou que a ocupação russa na Ucrânia é ilegal, tendo determinado a retirada imediata das tropas no terreno. Apesar da insistência da Rússia, o Tribunal declarou, sem margem para dúvidas, a sua jurisdição sobre o caso, ao abrigo da Convenção para a prevenção e punição do crime de genocídio.

Já no caso de Gaza, numa ação proposta contra Israel pela África do Sul com fundamento na mesma Convenção para a prevenção e punição do crime de genocídio, o Tribunal reconheceu o direito à legítima defesa de Israel contra os ataques do Hamas de 7 de outubro, incluindo neste as ações destinadas à libertação dos reféns em Gaza, alertando embora para a necessidade de respeito pelo direito internacional humanitário, incluindo a proteção de alvos civis, bem como a garantia de assistência humanitária e o estabelecimento de corredores humanitários que assegurem o acesso das populações a bens essenciais.

Estas medidas foram reforçadas na região de Rafah, em face do agravamento do conflito, tendo o Tribunal determinado que Israel deve “cessar imediatamente a sua ofensiva militar, bem como qualquer outra ação na província de Rafah, que possa infligir ao povo palestiniano em Gaza condições de vida suscetíveis de provocar a sua destruição física total ou parcial”. Do mesmo modo, ordenou “manter aberta a passagem de Rafah para o fornecimento sem entraves, à escala necessária, de serviços básicos e de assistência humanitária urgentes”.

No caso do TPI, foram emitidos contra Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa, e contra Maria Lvova-Belova, comissária para os direitos das crianças, mandados de detenção por terem cometido crimes de guerra relacionados com a deportação de crianças de território ucraniano para território russo, em violação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. É a primeira vez que o presidente em exercício de uma grande potência mundial e membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas é sujeito a um mandado de detenção, assim limitando de forma drástica a sua capacidade de movimentação. Isto significa que Putin poderá ser detido e entregue ao Tribunal caso se desloque a qualquer um dos 124 Estados Membros do Tribunal.

É certo que, recentemente, visitou a Mongólia, Estado Membro, sem que a detenção tivesse ocorrido. Mas o facto de essa visita ter sido notícia, e a pressão diplomática sobre a Mongólia, torna improváveis visitas semelhantes no futuro, sobretudo a países que não queiram ver manchada a sua reputação na comunidade internacional.

O Procurador do mesmo Tribunal Penal Internacional propôs a emissão de mandados de detenção contra os líderes do Hamas e contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel, o que enfureceu estes últimos, não apenas pela decisão do Procurador como pelo facto de terem sido colocados em plano equivalente ao do Hamas, considerado por muitos uma organização terrorista. Estes mandados não foram ainda emitidos, uma vez que aguardam a decisão dos juízes do Tribunal tendo, entretanto, caducado as acusações contra o responsável do Hamas, Ismail Haniyeh, em resultado da sua morte em Teerão.

Neste contexto pode afirmar-se que o direito internacional e as suas instituições judiciais estão a funcionar. Claro que a execução destas decisões dependeria, em larga medida, de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que se encontra, como é sabido, no essencial, bloqueado, por força do direito de veto dos seus membros permanentes e do conflito que opõe a Rússia e a China aos Estados Unidos, tornando impossível qualquer decisão substancial daquele órgão fundamental, a quem cabe garantir a paz e a segurança internacionais.

E aqui vale a pena regressar à semana passada, à Assembleia Geral das Nações Unidas e à referida “Cimeira do Futuro”. Na sequência desta cimeira foi adotado o “Pacto para o Futuro”, o qual trata de questões tão prementes quanto diversas como um acordo digital global, uma declaração sobre gerações futuras, a paz e a segurança internacionais, ou a governança das Nações Unidas.

Quando se quer tratar de tudo, muito fica de fora. Concentremo-nos, por isso, nestes últimos aspetos: a segurança internacional e a reforma institucional das Nações Unidas.

Assim, por exemplo, os Estados comprometem-se a proteger todos os civis em conflitos armados, reconhecendo que o genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, incluindo os ataques deliberados contra civis e infraestruturas civis, são proibidos pelo direito internacional.

Da mesma forma, assumem a obrigação de respeitar as decisões e o mandato do Tribunal Internacional de Justiça. Reconhecem o contributo positivo do Tribunal Internacional de Justiça, o principal órgão judicial das Nações Unidas, nomeadamente na resolução de litígios entre Estados e reafirmam a obrigação de todos os Estados cumprirem as decisões do Tribunal nos casos em que são partes.

Com relevo – e novidade – ainda maior, os Estados assumiram o compromisso de reformar a governança das Nações Unidas, incluindo a revisão da composição e modo de funcionamento do Conselho de Segurança. Afirmaram a intenção de reforma do Conselho de Segurança, reconhecendo a necessidade urgente de o tornar mais representativo, inclusivo, transparente, eficiente, eficaz, democrático e responsável. Reconhecem que a questão do veto é um elemento-chave, comprometendo-se a chegar a um acordo sobre o seu futuro, incluindo o debate sobre a limitação do seu âmbito e utilização. Isto tudo acontece quando Portugal lança uma campanha decisiva para integrar aquele órgão nos próximos anos.

As Nações Unidas e o direito internacional desempenham um papel essencial: é neles que assenta a legitimidade da ação internacional. É com esse fundamento que hoje podemos afirmar, com toda a clareza, que a Rússia ocupa ilegalmente parte da Ucrânia, que Putin cometeu crimes de guerra, e que Israel excedeu os limites do seu direito à legítima defesa. Que o Irão bombardeia ilegalmente Israel e usa como seus mandatários organizações ilegítimas como o Hamas ou o Hezbollah. Sem direito internacional, sem Nações Unidas, estas afirmações estariam sujeitas a contestação, a pontos de vista, a nuances geopolíticas.

Sem direito internacional e sem Nações Unidas não teria sido possível adotar o “Pacto para o Futuro”, nem reafirmar a crença nos direitos humanos, na proteção das populações civis. Não seria possível reformar o Conselho de Segurança nem o direito de veto dos seus membros permanentes porque, sem Nações Unidas, nada haveria a reformar. O que é imperfeito pode ser melhorado. Antes as dúvidas da imperfeição do direito que o caos da sua inexistência.