Os bairros sociais recebem um tratamento geográfico, policial e, sobretudo, político diferente. Entende-se aqui político no sentido amplo do termo. Ou seja, uma exclusão representativa através da construção de uma imagem pública de lugares inapropriados e desajustados a uma vida dentro da normalidade jurídica. Outrora, geografias problemáticas, e hoje, zonas urbanas sensíveis.
Houve uma modificação da linguagem, mas não significou que a arqueologia de conhecimento produzida sobre os bairros tenha sofrido algum tipo de alteração, sobretudo no imaginário colectivo português.
Quando um sujeito é exposto a um conjunto de estímulos negativos sobre uma realidade, dificilmente ou jamais terá uma posição neutra ou positiva, bem pelo contrário. Quando um polícia entra num bairro, já está inevitavelmente contaminado por uma realidade negativa e insegura sobre o outro.
Como é que os bairros chegaram a esse patamar de representação? A resposta está na História Colonial Portuguesa. A sociedade portuguesa, à semelhança da francesa, está marcada por um processo de descolonização traumático e isto gerou um conjunto de discursos racistas e de ressentimentos face aos negros. Os bairros são encarados como uma continuidade africana na capital do império desfeito, com uma forte presença étnica e negra e de hábitos culturais enraizados africanos.
Exigiu-se a essas comunidades um processo de integração à sociedade portuguesa, através da reprodução dos hábitos e costumes locais, baseando-se no princípio de que viver “aqui” implica integrar-se na sociedade portuguesa. Trata-se de um discurso semelhante ao praticado na era colonial, onde havia uma necessidade de assimilação dos valores culturais dos brancos, considerados superiores – remetendo à mission civilisatrice. Este discurso revela um desconforto com a preservação de alguns valores colectivos africanos que resistem nas periferias de Lisboa.
Os ingleses no Algarve não são obrigados a integrar os valores culturais dos portugueses. Os portugueses nos países africanos também não são obrigados a integrar os valores africanos, tendo a liberdade de exercer os seus próprios hábitos e costumes culturais (festas populares), sem significar um atentado à ordem de valores dessas realidades.
Os bairros são classificados como sensíveis devido à sua predisposição à prática de crime, partindo-se de uma predisposição normativa de antecipação do facto criminal. A polícia é legitimada através da ordem discursiva de representação do bairro, a revistar, prender, agredir e até matar, necessitando apenas de produzir um auto de ocorrência, onde deve ecoar a narrativa do pré-facto crimininal. Ser um sujeito com cadastro, detenções e envolvimento em gangues ajuda a preencher a categoria representativa construída.
Não existe excepcionalidade jurídica que não comece antes na linguagem produzida e reproduzida até ocupar um lugar no imaginário colectivo.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.