A vitória de Donald Trump para um novo mandato presidencial na Casa Branca fez rufar os tambores de alerta por toda a Europa. Se a vitória de Trump foi algo previsível, a diferença na votação popular e na conquista de lugares na Câmara dos representantes a seu favor foi algo surpreendente. Com Trump presidente, prevê-se um estado de novo mais voltado para dentro, assegurando a liderança do mundo, através do foco em regiões específicas de influência.

Contudo, esta presidência realizar-se-á em moldes muito diversos da sua presidência. Para além dos dois conflitos em que os Estados Unidos se envolveram indiretamente (Ucrânia, Palestina/Líbano), através do fornecimento de armamento e capacitação das tropas em combate, existe um ambiente internacional tenso, em que os golpes de estado se têm sucedido, por exemplo, na África subsariana.

Sem recuperar da pandemia, quase todas as sociedades foram confrontadas com uma inflação galopante, insatisfação das camadas populares  e uma maior vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos. Contudo, a governação global parece perder espaço, face ao ressurgimento de disputas internas agudas.

O batuque de agora

Da África subsariana chega-nos uma cada vez maior insatisfação relativamente ao empobrecimento que estas populações têm sofrido. Moçambique é um desses casos paradigmáticos que enfrenta, em simultâneo, a perda de capacidade aquisitiva da população, os movimentos insurgentes do norte do país e a contestação aos resultados eleitorais.

Apesar de a Frelimo sempre ter vencido as eleições, depois do final do regime de partido único, e de a Renamo, em geral, contestar esses resultados, nunca tinha existido uma contestação tão forte. O processo de paz moçambicano, embora mediado no âmbito da manutenção de um estado moderno, mantém muitos princípios associados ao mundo tradicional. Dois partidos que refletem no estado nacional clivagens étnicas e regionais, negociaram os termos de uma paz que de certa forma os acomodou a papéis diferentes, em troca de uma paz duradoura.

Apesar de uma negociação numa lógica de modernidade, esta não deixou de refletir alguns dos métodos associados à resolução tradicional de conflitos, refletindo ainda a necessidade de responder a lógicas de pensamento que incluem características de modernidade e de tradicionalidade.

Nas últimas eleições, apareceu um novo ator, com implantação urbana, menos ancorado numa lógica tradicional de poder, mas capaz de desafiar o poder político pela sua capacidade de mobilização. Fenómeno novo, traz consigo algumas características de pós-modernidade pela flexibilidade da sua estrutura e base de sociedade civil com uma estrutura institucional fraca, mas capaz de falar ao coração dos moçambicanos. Em tudo, muito semelhante aos novos movimentos que se encontram por todo o mundo. Usa as redes sociais para a mobilização (agora controladas) e tem um discurso claro relativamente aos efeitos negativos da governação mais recente, alicerçando-se nas estruturas modernas da governação.

Contudo, levante-se a questão: como se harmoniza este poder com as fontes de poder tradicional? Será este movimento representativo fora das comunidades mais urbanitas?

O batuque longínquo

No seu recente livro “O Mestre dos Batuques”, editado pela Quetzal, José Eduardo Agualusa, escritor angolano a residir em Moçambique, elabora uma viagem no tempo e no espaço, regressando ao planalto central de Angola, onde nasceu. O livro estabelece vários diálogos entre os dias de hoje e o passado, entre o autor e o leitor, entre a narradora e o leitor. Na profusão de diálogos, citam-se documentos, contam-se histórias e estórias, revisita-se o papel do batuque na formação identitária de parte do território angolano e faz-se essa viagem no tempo, até aos tempos dos reinos africanos.

Se olharmos para o anterior livro de José Eduardo Agualusa, “Vidas e mortes de Abel Chivukuvuku”, teremos a ligação temporal, explicando como o Reino do Bailundo ainda se mantém vivo e foi também fonte de ambições de poder de características modernas, nomeadamente, através da formação de um partido. Até que ponto este estado moderno se pode reinventar sem se conectar à tradição e a uma organização tradicional interrompida pela ocupação efetiva e pelo imperialismo moderno preconizado em finais do século XIX?

Estas duas obras são testemunhos literários da formação de identidades regionais, nacionais, mas também individuais que ainda não se acomodaram totalmente à modernidade. Este clima de pós-modernidade que permite que instituições menos consistentes se organizem e contestem o poder ou que as comunidades se revejam num líder afastado dos grandes protagonistas das fontes de poder tradicional, é propício ao questionamento dos percursos de modernidade instaurados, muitas vezes, exogenamente.

Agualusa descreve com maestria entre realidade e ficção, entre herança portuguesa e africana, essa identidade e anseio tão próprios de sociedades que, por vezes, parecem quase equidistantes dos polos que estão na sua origem. A literatura, como sempre, constitui uma excelente forma de reconstituição da realidade e do que esta poderia ter sido. O tema político não é alheio à criação literária. A história não pode ser construída sem esta viagem pela escrita bela. A história da literatura constitui um exercício de reflexão sobre os vários períodos que uma sociedade atravessa.

No caso português, muitas vezes essa literatura acabou por perpassar diversas literaturas que, sendo outras, também são parte de si. A Temas e Debates publicou recentemente um volume intitulado “História Global da Literatura Portuguesa”, organizado por Annabela Rita, Isabel Ponte de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real, que vale a pena ler e viajar pelas várias épocas. Estão lá vertidos fenómenos políticos e sociais, hesitações e formulações de identidade e acima de tudo visões novas do passado, referindo o papel da literatura na construção de uma perspetiva histórica global.

Em suma, estes três livros, de forma diferente, contribuem para a construção de uma perspetiva sobre acontecimentos do passado através da literatura. No caso de Agualusa, também da música, através do batuque.

Em tempos de regresso de batuques reinterpretados e de novas esperanças de cowboys que vencem índios, a literatura ajuda-nos a viajar no tempo e no espaço e a reconstituir a construção de identidades, mesmo em tempos que só a economia parece mandar. Porque, na verdade, são as perceções da realidade que determinam o comportamento humano e não os factos em si.

Há muito que os autores literários perceberam isso e contribuíram para parte da construção da realidade. Trump venceu em toda a linha, porque a perceção do governo anterior era negativa e a sensação de empobrecimento da população, dada a inflação, era real. O Podemos em Moçambique tem apoio popular porque a perceção de várias comunidades é a de falta de democracia e a sensação de empobrecimento é generalização. Sentimentos e perceções são, por isso, fundamentais para o facto político.