No “princípio” era a segurança no vínculo contractual, as melhores condições financeiras do que a média nacional e alguns benefícios como as comparticipações na saúde. Nessa altura previam-se progressões na carreira e havia uma perspectiva de melhoria permanente e de um futuro em que os amanhãs cantavam. Alguns sentiam o propósito de contribuir para uma missão especial, para a causa e serviço público.
Há anos que se discutem reformas da administração pública, primeiro por necessidade de redimensionamento da despesa pública, por vezes por razões de modernização administrativa ou inovação, recentemente por necessidade de vinculação de profissionais.
Raramente nos focamos nas mudanças que pragmaticamente são necessárias para entregarmos de forma sustentável os serviços públicos aos cidadãos. Mais raramente nos focamos naquilo que é correcto fazer, nas boas práticas de gestão, orientadas por uma ética e pensamento humanista. Pensamos mais e demasiado apenas no que é o nosso interesse individual e demasiado… pouco no interesse colectivo, no outro e no que é sustentável decorrente das nossas decisões.
Tenho alertado, desde há alguns anos, para a desesperança cada vez mais adquirida um pouco por todas as áreas da administração pública. Crê-se pouco no futuro. Crê-se pouco nos decisores políticos ou mesmo nas lideranças de forma geral. Muitos trabalhadores, uma boa parte qualificados ou muito qualificados, estão mais que desmotivados. Estão despersonalizados até. Não têm autonomia, não são reconhecidos e as relações existentes têm-se deteriorado.
O nós contra eles e a polarização dentro das próprias organizações públicas não ajuda. Não se veem as pessoas! Por vezes, até mesmo quando esperneiam, protestam, alertam ou propõem proactivamente são ignorados, invisíveis até. Por isso, se um dia lhes oferecerem flores… isso é… visto como engano, poeira para os olhos, não genuíno, insuficiente ou nem sequer entendido, tal a raiva que já se espalha por todos os corpos.
A percepção de injustiça aumenta e os pontos de referência com que avaliamos o que temos não ajudam ao que queremos ter, pois as fasquias são cada vez mais altas, não estão associadas ao desempenho nem à missão efectiva.
Ao lado, entram aqueles que ocuparam cargos políticos, ou vão ocupar, entram para liderar, por vezes áreas que alguém ou os próprios acham que tinham jeito, independentemente de terem ou não competência. E a percepção de injustiça aumenta. Tudo cumulativamente. Depois queixamo-nos que não querem trabalhar no Estado, que estão em burnout ou com outras formas de sofrimento físico e psicológico intenso e prolongado, alguns mesmos já doentes. Ao contrário do que alguém disse, o monstro que estamos a alimentar não é a administração pública, mas sim o populismo e a demagogia.
Este texto não pretende fazer um levantamento exaustivo do estado a que o Estado chegou. Até porque temos bons serviços públicos em algumas áreas quando comparados com muitos outros países, até mais ricos que nós. Pretende sim, com este retrato, alertar para o pouquíssimo que se faz na prática para resolver estes problemas. Fazem-se grandes anúncios, atira-se com dinheiro sempre que se pode e “estranhamente” parece que isto não se resolve. Porque será? Fazer o que se sabe que deve ser feito em termos gestão e política pública, sem perder o pé face ao interesse público e aos objectivos comuns é que está em défice.
Gerir pessoas é complexo. O processo exige competência, esforço e tempo. Não compliquemos ainda mais e não estraguemos a vida a tanta gente. A devolução de esperança é urgente. Mas a esperança constrói-se com mais do que discurso. Precisa de acções, que já vão tarde, que devolvam agenciamento às pessoas e uma perceção, assente em factos, de uma gestão correcta, ética e tecnicamente falando.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.