Estoril, 12 de novembro de 2024

Filipe Pinhal,

Um dia alguém investigará, com seriedade e profundidade, a crise institucional que assolou o Banco Comercial Português (“BCP”) em 2007, um caso de maciça destruição de valor numa empresa bem-sucedida.

O seu novo livro “Estes Portugueses São do Piorio” (ed. Atlântico), que hoje lançou, não contribui para o melhor conhecimento e compreensão do que sucedeu.

Trabalhei no BCP mais de 19 anos e como membro da administração executiva testemunhei ou participei em boa parte dos factos ocorridos em 2007. Com franqueza, não tencionava dedicar tempo a esta matéria sobre a qual, há muito, virei a página. Não tenho nisso gosto ou interesse; mas a sua insistência numa versão propagandística do sucedido compele-me a tornar pública uma visão bem diferente.

Tratarei de um número limitado de aspetos dessa crise. Permaneço vinculado ao sigilo profissional e, por isso, não aludirei às relações com clientes e com acionistas do banco; considero os colegas que nos procederam na administração, e tal basta para não cometer a deselegância de criticar atos de gestão posteriores a 2008; e respeito o poder judicial, pelo que nada preciso de dizer sobre processos já decididos pelos tribunais. Em todas estas matérias o seu livro está eivado de falsidades, distorções ou meias-verdades.

  1. O assalto ao BCP existiu?

A ideia de que estava em curso um “assalto” ao BCP foi lançada por si, ainda em 2007. A expressão não era original. Em 1995, José Augusto Fernandes e Cristina Silva publicaram “Assalto ao BPA” (ed. L. Bertrand). Este livro pretendia descrever como Jorge Jardim Gonçalves (“Jardim Gonçalves” ou “JJG”) e o BCP, com a colaboração do governo da época, tinham “assaltado” o Banco Português do Atlântico (“BPA”) …

A tese do assalto teve por objetivo lançar uma cortina de fumo que desviasse a atenção pública da matéria dos processos contraordenacionais e criminais que se seguiriam, de modo que os mesmos fossem interpretados como instrumentos da alegada ofensiva. Terá sido uma tentativa de desinformação e de vitimização com que obteve um razoável êxito. Muitos foram os analistas, comentadores e fazedores de opinião que aderiram à teoria, fosse por simpatia ou justificada admiração por Jardim Gonçalves, fosse por razões de índole política ou, simplesmente, por desconhecimento ou ingenuidade. Muito boa gente ainda hoje acredita que as mudanças operadas no BCP em 2008 foram originalmente arquitetadas, patrocinadas ou mesmo causadas por José Sócrates, Fernando Teixeira dos Santos e Vítor Constâncio e seus “mandantes, cúmplices e operacionais”. Ora, nada é menos verdadeiro.

O seu escrito desdobra-se em imaginativas cronologias do pretenso assalto, que tanto teria começado a ser planeado em 2004/5 entre pessoas ligadas ao “Compromisso Portugal”, como teria sido municiado com financiamentos e outras facilidades concedidas pela Caixa Geral de Depósitos, pelo Banco Espírito Santo e pelo próprio BCP a alguns dos acionistas que integrariam as hordas assaltantes, como ainda disporia de apoio governamental e das autoridades de mercado. Quanto aos objetivos, tratar-se-ia de servir certos notáveis, que ambicionavam administrar o BCP, de reforçar o poder de uma mão-cheia de acionistas, que assim lograriam não ter de reembolsar as suas dívidas ao banco, de alargar a base de apoio do novo presidente executivo, Paulo Teixeira Pinto (“Teixeira Pinto” ou “PTP”), de quem, oportunamente, os assaltantes se libertariam ou, mais candidamente, de dispor de um BCP mais dócil aos desígnios governamentais.

Tudo isto beneficia da atração inerente às teorias da conspiração, mas não é minimamente rigoroso. A causa verdadeira da crise foi interna e é muito menos sexy: radica, como a seguir explicarei, numa condução desastrada do processo de sucessão de Jardim Gonçalves à cabeça do poder executivo do banco.

Neste ponto tenho de recordar-lhe que vigorava no BCP a regra informal de que os administradores deixariam o cargo no final do mandato durante o qual completassem 65 anos de idade. Por razões que não vem ao caso referir, Jardim Gonçalves apenas em 2004 decidiu – já sob discreta pressão de agentes de mercado (investidores institucionais, companhias de rating, bancos de investimento) – sair da presidência executiva na assembleia geral seguinte, próximo dos 70 anos. Assim fez, não sem antes designar um sucessor e criar as condições para passar a presidir ao conselho superior, órgão não estatutário integrado por representantes de acionistas ao qual, em bom rigor, não tinha qualidade (entenda-se: de acionista com posição significativa no capital do banco) para pertencer.

Depois, já sob a orientação de Teixeira Pinto, preparou-se um novo modelo de governo do banco, cujo desenho final mereceu o acordo pleno de Jardim Gonçalves e que foi aprovado em assembleia geral (“AG”) de acionistas. Criaram-se um conselho geral e de supervisão (“CGS”) e um conselho de administração executivo (“CAE”), ambos eleitos pela AG. JJG e PTP prosseguiriam como presidentes destes dois órgãos. Em suma, Jardim Gonçalves saía de CEO, mas permanecia como Chairman.

O novo presidente executivo, contrariamente ao que seria a expetativa de muitos, não se viu vinculado a atuar como mero “sucessor”, agindo sob o comando do presidente do CGS. Adotou um modelo e estilo de liderança próprios e procurou colher apoio para uma visão estratégica continuadora, mas distinta da que, até então, vigorara. Diversos membros do CGS foram, desde o início, abertamente críticos deste posicionamento; pior ainda, parte da equipa executiva que, na realidade, PTP não escolhera, traía-o sistematicamente. Para usar uma imagem, que é de sua autoria e descreve bem a situação, formaram-se duas cortes: uma na Rua Augusta, em torno do presidente do CAE, e outra no Tagus Park, em torno do presidente do CGS.

Neste contexto, o presidente do CGS propôs que a assembleia geral deliberasse, em maio de 2007, uma alteração estatutária para, em pleno curso de mandato, colocar o CAE sob a dependência do CGS e não mais da assembleia geral. Os acionistas, incluindo os representados no CGS, dividiram-se sobre a oportunidade dessa proposta e os membros do CAE também. Importa salientar que este novo modelo violaria o princípio de independência dos dois conselhos, atribuindo ao CGS um poder direto sobre a administração executiva do Banco que, em rigor, não deveria caber a um conselho de supervisão o que, portanto, representava um retrocesso no processo de sucessão de JJG e na adoção de um modelo de governo devidamente alinhado com as melhores práticas do setor financeiro.

Por essa altura, foi-me sugerido por um Colega do CAE que seria preferível não tomar posição, que os visados não éramos “nós”, os administradores mais antigos, mas apenas o novo presidente. Considerei tal convite incompatível com o princípio da lealdade.

O que se seguiu, entre março de 2007 e janeiro de 2008, foi penoso. Os detalhes estão adequadamente refletidos nas atas dos órgãos sociais do banco, a meu ver a melhor fonte para estudar e compreender quão rápida e profunda foi a rutura e quão radical foi o conflito que acabou por resultar na saída de Teixeira Pinto, primeiro, do próprio Jardim Gonçalves, depois, e na profunda recomposição desses órgãos, conduzida a várias mãos, em parte, é certo, desde o exterior pois, a certa altura, as autoridades de mercado tiveram, necessariamente, de envolver-se.

Ambos sabemos, Filipe, que a crise não foi a fase culminante de um plano de assalto, preparado e executado por terceiros, mas sim o resultado da abertura de profundas brechas num edifício que parecia sólido, embora estivesse minado por diversas debilidades, e que poderia ter sido evitada não fosse o despropósito da tentativa, aliás abortada, de alteração inusitada dos pressupostos de repartição do poder executivo no banco.

  1. Angola, BPI, Grécia

A sua exposição sobre as entradas da Sonangol e da Fosun no capital do BCP termina com a exclamação “saudades dos tempos em que os parceiros internacionais do BCP eram todos europeus e juntos não somavam 10% do capital”. Preconceito, ou nostalgia do tempo em que os acionistas, vários deles dependentes de concessões do banco, tinham escassa influência sobre a atuação da administração executiva?

Há muito que o BCP desejava atrair capital acionista angolano. Houve diligências com esse propósito desde 1992, pelo menos. A partir de 1995, com a aquisição do BPA, o grupo passou a ter presença no país. Pensou-se que o estabelecimento de parceria segundo modelo semelhante ao que se desenvolvera em Moçambique seria uma questão de tempo; mas as elites angolanas tinham uma visão diferente. A certa altura, as negociações decorriam com a administração da Sonangol, companhia que também investia noutros bancos; o BCP queria evitar ficar envolvido em conflitos de interesses e as conversas arrastavam-se. PTP herdou o dossier e procurou desenvolver contactos e abordagens suscetíveis de o desbloquear; mas é totalmente falso que estivesse previsto assinar com a Sonangol, durante a deslocação a Luanda programada para julho de 2007, qualquer acordo que não tivesse sido, antes, aprovado pelo CAE.

Ainda hoje me pergunto se a conclusão a que o Filipe chegou de que PTP e eu próprio planearíamos exorbitar dos poderes legítimos celebrando um acordo não aprovado, correspondeu a uma perceção genuína ou se constituiu pretexto para abrir uma crise decisiva dentro do órgão de administração, desautorizando o presidente. Infelizmente, com a passagem do tempo, inclino-me mais para a segunda explicação.

A oferta pública de aquisição (“OPA”) sobre o Banco BPI (“BPI”) e, depois, o projeto, de iniciativa desse banco, de fusão com o BCP são histórias também deficientemente relatadas no seu livro.

A decisão de lançar a OPA, em março de 2006, não foi, como bem sabe, fruto de “precipitação” de PTP. O tema já tinha merecido abundante ponderação e reflexão antes de PTP integrar o conselho. O lançamento da OPA, que realmente não mereceu consenso teve, porém, o respaldo muito ativo de JJG que, mais tarde, quando se tornou evidente que a oferta não teria sucesso, tomou cautelosamente as suas distâncias.

Em outubro de 2007, em plena crise do BCP, a administração do BPI terá acreditado que estariam reunidas condições para uma fusão por via da qual o mais pequeno dos dois controlaria, de facto, o maior.  Existiam fortes motivos que militavam em favor da fusão e, por isso, a proposta foi cuidadosamente avaliada. Afirma que a operação teria sido “sabotada” pelo Banco de Portugal, mas não menciona que a principal razão, muito objetiva, por que a administração, aliás sob a sua presidência, não recomendou ao CGS a aprovação foi que os termos de troca entre as ações dos dois bancos propostos pelo BPI eram desfavoráveis aos interesses dos acionistas do BCP.

A administração presidida por Carlos Santos Ferreira, eleita em janeiro de 2008, é por si acusada de ter “revertido” a venda da participação na filial da Grécia “prevista para ocorrer no primeiro semestre de 2008 por, no mínimo, 800 milhões de euros”. Deixa entender que a administração a que presidiu, durante agitados 4 meses, teria em curso a vantajosa transação, porém tal não coincide com nenhum facto conhecido. Esta quimera serve-lhe para desencadear um ataque, infundamentado e injusto, a essa administração que acusa de ter causado um “buraco” de 5.000 milhões de euros nas contas do banco, sem nunca mencionar que ela o geriu durante a mais grave crise financeira deste século.

  1. Do “dever do bom nome”

Não deixa de ser curioso que este livro surja 15 anos após “O Dever do Bom Nome – Conversas com os meus Filhos” (ed.  Bnomics) no qual escrevia: Este não é um livro sobre o “Caso BCP”. Não há interesse, não é útil, nem é saudável remexer no passado. Deixemos aos historiadores a tarefa de voltar ao Caso (…).

Deixemos, então, aos historiadores essa tarefa, não sem lhe dizer que este seu livro em nada lhes facilitará o trabalho.

Compreenderá também, Filipe, que eu tenha o direito de defender o meu bom nome dirigindo-lhe esta carta aberta.

Por último, lembremo-nos que a história não acabou em 2008, quando o Filipe e eu saímos do Banco. Felizmente, os que nos sucederam têm tido a capacidade de fazer tão bem ou melhor do que nós, de tal forma que o BCP continua a ser uma referência cimeira de qualidade de serviço bancário em Portugal.

E isso deveria, no mínimo, alegrá-lo.