Em julho de 2024, as criptofichas de moeda eletrónica passaram a constituir uma nova forma de agregado monetário disponibilizado pelo sistema financeiro a todo o tipo de consumidores no espaço da União Europeia. Mas afinal, o que são estas criptofichas? Este é o termo escolhido pelos legisladores para traduzir o conceito de token criptográfico no âmbito da Web3.
Estas criptofichas representam um novo tipo de token que incorpora o dinheiro eletrónico que utilizamos no nosso quotidiano. Já existem, aliás, cerca de duas dezenas de instituições financeiras licenciadas ou em fase de licenciamento junto das entidades supervisoras da União Europeia. Mas até que ponto este novo tipo de dinheiro é diferente?
Considerando o dinheiro como um direito, as criptofichas de moeda eletrónica (EMT) são um excelente exemplo da Res Digitales, conceito abordado há quase três anos, quando discutimos a tokenização do direito de propriedade. No contexto do dinheiro, as notas e moedas são um direito cuja emissão cabe aos bancos centrais, configurando-se como um tipo de Res Corporales, enquanto os saldos bancários correspondem à Res Incorporales, na mão da banca.
O surgimento das Res Digitales neste domínio, tão central para a nossa economia, merece uma reflexão aprofundada. Afinal, o dinheiro, independentemente da sua forma, é o principal responsável pela eficiência das transações económicas. Sem esta ferramenta de medição e transferência de valor, seria quase impossível realizar a maioria das transações que sustentam o ciclo económico-financeiro. Então, o que significa a tokenização do dinheiro?
Como o dinheiro serve para realizar pagamentos, o primeiro impacto que nos ocorre está relacionado com o ecossistema que o gere. Embora este não seja o efeito mais relevante dos EMT, vale a pena uma análise. Na prática, um EMT funciona de forma semelhante a uma criptomoeda tradicional ou a uma stablecoin. É um direito registado numa blockchain, ativado pela chave criptográfica associada ao seu registo e representado por um token. Assim, ao realizar um pagamento, em vez se de trocar notas ou moedas ou se alterar saldos bancários, assistimos à transferência de token entre carteiras digitais (wallets). Estas carteiras são capazes de armazenar este tipo de token, da mesma forma que já hoje manipulamos, por exemplo, bilhetes de avião nos smartphones.
Como o sistema de compensação financeira não intervém nestas operações, deixam de existir as taxas associadas a cartões multibanco ou serviços como o MB Way. Comerciantes podem beneficiar ao reduzir custos com estes serviços, e consumidores podem aproveitar para enviar dinheiro diretamente a outros consumidores ou comerciantes sem limitações.
Contudo, para que isso seja possível, todos os intervenientes precisam de estar preparados com as wallet necessárias. Para os consumidores, as wallet já disponíveis para criptoativos são suficientes, mas os comerciantes precisam de reconhecer estes agregados monetários no ponto de venda. Este será um tema a explorar assim que estivermos à beira dos primeiros exemplos práticos.
Ainda assim, o uso mais interessante deste novo tipo de dinheiro vai muito além dos pagamentos do dia a dia. A aplicação mais impactante será nas transações de autoexecução ecossistémica da economia regulada. Trata-se de um caso tão relevante que merecerá uma discussão detalhada no momento certo. Por agora, concentremo-nos no marketing, já que as empresas que quiserem inovar têm uma oportunidade imediata de explorar esta vantagem estratégica.
A legislação portuguesa sobre moeda eletrónica já previa a possibilidade de empresas emitirem a sua própria moeda de forma independente e medida em euros, e sem necessidade de autorização do Banco de Portugal desde que o agregado monetário não exceda os cinco milhões de euros. O mesmo princípio aplica-se agora aos EMT. Isto significa que qualquer empresa pode iniciar já hoje interações com os seus consumidores através das wallet criptográficas já disponíveis para o universo DeFi.
Além disso, este panorama mudará significativamente quando a nova identidade digital da União Europeia, já discutida neste espaço, estiver disponível ao cidadão comum, algo previsto para o final de 2026. Até lá, os EMT podem ser usados como uma forma extremamente conveniente de substituir cartões de pontos e descontos, sejam estes físicos ou virtuais. Com uma única wallet, cada consumidor poderá centralizar todo o valor acumulado numa só aplicação móvel.
Desta vez, a regulação antecipou-se à prática, pelo que apetece perguntar às grandes empresas de marketing: vamos a isto?