“A Cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça”, Sophia de Mello Breyner Andresen, 1975
Olhemos para o ano de 2024 na Cultura procurando, não o que enfeita, mas o que tem o poder de nos transformar. Num exercício de balanço que realça o que importa às pessoas, aos artistas e profissionais do setor cultural e à democracia, mais focado em acontecimentos relevantes e menos em protagonistas. Num percurso que nos mostra que cuidar do património, investir nas artes e alargar o acesso à Cultura nunca são feitos de uma pessoa só, é preciso semear durante muitos anos para colher os resultados.
Novo Governo, Cultura como Ministra
O ano de 2024 é o ano da tomada de posse de um novo Governo, que integra uma Ministra da Cultura. Este não é um dado menor. Foram necessários 20 anos de democracia para que a área da Cultura emergisse como Ministério e, desde 1995, apenas o Governo liderado por Pedro Passos Coelho regressou ao passado. É importante a Cultura ser Ministra porque, entre muitas outras razões que não caberiam aqui, significa ser politicamente valorizada.
O ano de Camões e da Resistência e Liberdade
O ano de 2024 assinala os 500 anos do nascimento de Camões. Este deveria ter sido um ano marcado por múltiplas iniciativas dedicadas à vida e obra de Camões, à sua relevância universal, ao significado contemporâneo da sua epopeia, à projeção internacional da língua portuguesa. Poderíamos ter feito tanto para celebrar Camões, através da Cultura, da educação, da economia, do turismo, da cooperação internacional. Fizemos quase nada, apenas a apresentação pública, no dia 10 de junho, do programa comemorativo que abrange teatro, cinema, publicações, televisão e exposições, como inicialmente previsto em 2021. Aguardamos pela sua concretização já que mais vale tarde do que nunca.
O ano de 2024 foi também o ano em que, finalmente, abriu portas o Museu da Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche. A história deste lugar é uma história de cativeiro, de violação dos mais fundamentais direitos humanos, em nome de um Estado que punia o livre pensamento. No “Depósito de Presos de Peniche”, prisão política desde 1934, milhares de pessoas foram presas e torturadas, não por terem praticado crimes, mas por se oporem a um regime político. Há cinco anos, no dia 25 de abril de 2019, foi inaugurado um memorial que inscreveu em aço os nomes de 2510 presos que estiveram detidos em Peniche e no dia 27 de abril desse ano foi inaugurada a exposição intitulada “Por teu livre pensamento”. Depois de obras de reabilitação, o museu foi inaugurado no dia 27 de abril de 2024.
Redes territoriais, o antídoto para a centralização
No Orçamento do Estado para a Cultura, o Governo propõe-se “combater a visão centralista”. Faz muito bem. O que se deseja é que mantenha e reforce as políticas de implementação e financiamento de redes territoriais de Cultura.
Em 2024, mais 18 teatros da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP) de locais como Albergaria-a-Velha, Santa Comba Dão e Sardoal, receberam investimento para programação artística e criação de novos públicos. Criada em 2019, a RTCP integra hoje 96 equipamentos culturais em todo o país e já foram investidos cerca de 54 milhões de euros em programação artística, num investimento conjunto entre Governo e Autarquias.
Em paralelo, a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (RPAC) também integrou novos equipamentos culturais em territórios como Vila Viçosa, Sines e Serpa e investiu em novos projetos de arte contemporânea. Criada em 2021, com a missão aproximar as pessoas da arte, a RPAC integra hoje 76 equipamentos culturais em todo o país.
Ainda no âmbito de redes nacionais, em 2024 foi lançado o novo ciclo do Plano Nacional das Artes. O PNA foi criado em 2019, com a missão de “promover a transformação social, mobilizando o poder educativo das artes e do património”. Hoje, a Rede de Escolas PNA é composta por 39 Agrupamentos Escolares em 221 municípios e propõe tornar “a escola um polo cultural” e cada “instituição cultural um território educativo”.
Investimento e valorização do Património Nacional
Um pouco por todo o país, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a Cultura, aprovado em 2021, vai permitindo reabilitar e dinamizar o imenso e extraordinário património cultural do nosso país. Um exemplo emblemático é Mafra.
Mafra é um bom exemplo da relevância da cooperação entre Governo e Câmara Municipal. Em 2019, ano da classificação do Real Edifício de Mafra como Património da Humanidade, é decidida a instalação do Museu da Música no Palácio de Mafra, criado o Arquivo Nacional do Som a instalar também em Mafra e, dois anos mais tarde, com a aprovação do PRR para a Cultura, foi dado o passo decisivo para a realização de todas as intervenções.
Este ano de 2024, foram lançados concursos para as obras de restauro do Palácio Nacional de Mafra, que acrescem aos trabalhos em curso para instalação do Museu Nacional da Música no Palácio. Também em Mafra, é anunciado o vencedor do concurso de arquitetura e lançado o concurso para construção do Arquivo Nacional do Som, um equipamento fundamental para a salvaguarda e projeção do património sonoro, musical e radiofónico português.
Orçamento do Estado para a Cultura, retrocessos e ausências
A discussão que domina a área da Cultura a cada novo Orçamento do Estado (OE) é a percentagem do orçamento atribuída ao setor. O valor absoluto tem vindo a aumentar de forma sustentada ao longo dos últimos dez anos, não necessariamente o valor relativo. O orçamento aprovado em 2024 não é exceção. Mas há diferenças substantivas neste OE.
O Governo recua vários anos ao reintroduzir o IVA reduzido para as touradas. A tourada é a exibição pública de tortura sobre animais. Uma sociedade humana decente combate todas as formas de violência sobre animais, num país civilizado um espetáculo de teatro, um concerto de música ou uma sessão de cinema não são equiparados a um espetáculo de tortura e morte de animais. Infelizmente, não é assim que o Governo vê o país.
O património cultural parece ser a prioridade central deste Governo. As verbas do PRR permitem um investimento significativo na requalificação de património em todo o país. Existe, porém, uma quase ausência das artes e do cinema nas propostas do Governo. Nas prioridades da Cultura encontramos museus, património e bibliotecas, mas não encontramos artes e cinema, nem qualquer referência ao Estatuto dos Profissionais da Cultura, aprovado em 2021.
Mudanças nas lideranças
No ano de 2024, assistimos a mudanças de dirigentes no setor da Cultura. Mudança de liderança significa sempre instabilidade e atrasos em decisões e investimentos. Por isso, deveriam ser uma decisão ponderada e fundamentada em critérios substantivos, cumprindo princípios de respeito e lealdade. Não foi o que vimos em 2024.
Um exemplo emblemático da relevância de estabilidade em cargo dirigente é o da Direção-Geral das Artes. Até 2019, a DGARTES viveu em permanente mudança de dirigentes e imprevisibilidade de ação. Desde esse ano, a DGARTES tem o mesmo diretor e nunca na sua história viveu um período tão prolongado de estabilidade, com resultados positivos. Neste período, conseguiu implementar um conjunto de mudanças significativas no modelo e volume de apoio às artes e incorporar com sucesso novos programas como a Rede de Teatros e Cineteatros, a Rede de Arte Contemporânea, o Programa Saber Fazer, entre outros exemplos.
A cada novo ciclo de Governo, há sempre espaço para mudanças. Mas algo permanece como imutável, a Cultura tem o poder de transformar a vida. Para o concretizar, é necessário investimento, estabilidade estratégica e valorização do património e das artes. É preciso semear e deixar crescer. Só assim é possível colher.