O sistema de saúde está em mudança e 2024 foi também um ano de reformas para o SNS.
Os anos de 2023 e 2024 foram particularmente difíceis no SNS dado que, para além de problemas estruturais e de indefinições de gestão, tem havido encerramentos sucessivos e temporário de diversos serviços, nomeadamente de urgência e em particular de ginecologia/obstetrícia e continua a fraca cobertura nos cuidados de saúde primários. Uma reforma exigia-se.
Um ciclo de reformas no SNS
Este novo ciclo do SNS formalmente poderia ter começado com a Lei de Bases da Saúde mas a vontade política era outra e, para sermos justos, a covid-19 foi absolutamente disruptiva e trouxe novas realidades e perspetivas, seja dos profissionais, seja dos cidadãos.
Foi em 2023 que o processo de reforma se tornou claro e 2024 foi um ano de muitas alterações. Passou a haver uma Direção Executiva do SNS, com competências e capacidade de decisão e de articulação e na sua liderança foi colocado o Prof. Fernando Araújo, um ilustre médico, reconhecido também pelas competências de gestão. Concretizou-se também a generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS) no território continental. Muito se dirá no futuro sobre o processo e as consequências, mas duas mudanças são inegáveis. Por um lado, com as ULS passa a haver integração num território dos cuidados primários com os cuidados hospitalares. Por outro lado, as ULS têm um financiamento per capita, ou seja, por um valor ajustado à população que serve, e já não pela atividade assistencial desenvolvida.
Na saúde, o ano de 2024 assentava assim num cenário de diversas alterações mas todos tinham presente que o enquadramento político iria ser redefinido. Na sequência das eleições legislativas, o novo governo toma posse a 2 de abril. Do PS para o PSD herdou-se o orçamento e o comboio em andamento das reformas e elevou-se a expetativa com a promessa de que em 60 dias seria apresentado um plano de emergência para o SNS e vários problemas, nomeadamente de acesso, haveriam de ser resolvidos.
Entretanto, deu-se a substituição do Diretor Executivo do SNS e dos presidentes da ACSS e do INEM e foram extintas as ARS. A “reforma das ULS” foi mantida, mas foi entretanto criada uma comissão técnica com o “objetivo de estudar as unidades locais de saúde de cariz universitário (ULSU) e a sua relação com o ensino médico, a formação e a investigação.”
Em termos de gestão dos recursos humanos do SNS, 2024 teve múltiplas medidas, supõe-se que muitas delas por reação aos movimentos sindicais e respetivas restrições ao acesso. Foi ainda no final de 2023 que se assinou um acordo com os médicos (+14,6%) mas foi já este ano que se aplicou o regime jurídico de dedicação plena no SNS (+25%).
Em setembro há um acordo plurianual com os enfermeiros para o aumento de 6 posições remuneratórias (+300 euros). O ano que agora encerra foi também o da criação alargada de centros de responsabilidade integrados (CRI) em hospitais do SNS e o da passagem alargada das unidades de saúde familiar para o modelo B.
Para além destas alterações organizacionais, também houve a assunção de medidas de caráter supostamente pontual para resolver situações agudas (urgências, cirurgias oncológicas, etc.) que, na prática, levaram à inflação do valor/hora dos profissionais e ao pagamento de 90% do GDH às equipas cirúrgicas. Com o efeito rendimento a superar o efeito substituição e o número de horas disponíveis a diminuir.
Apesar de tantas alterações, é preocupante que o estudo recente da PlanAPP conclua que “não se encontra definida uma estratégia nacional ancorada em evidências de diagnóstico, estimativa de necessidades e propostas de medidas concretas de política pública sistematizadas e coerentes no que toca aos RHS, seja a nível nacional (o que seria desejável) ou apenas circunscritas ao SNS.”
Em termos financeiros, a mais recente atualização orçamental do SNS em 2024, que aponta para um défice de 665 milhões de euros, e um nível de execução do investimento (leia-se PRR neste caso) pouco superior a 50%. As despesas com Pessoal têm um acréscimo de 15% e a tendência de subfinanciamento do SNS mantem-se pelo que, uma vez mais, houve que injetar 975,5 milhões de euros para pagamento de dívidas dos hospitais públicos.
Aprofunda-se o caráter misto do sistema de saúde
O maior problema dos sistemas de saúde é o do acesso. O SNS tem hoje mais médicos, enfermeiros e técnicos do que alguma vez teve e a sua atividade atinge níveis históricos.
Mas a oferta pública não é suficiente. Em termos de utilização e de acesso, os hospitais privados tornaram-se uma opção normal, frequente, para um número crescente de portugueses.
Este aumento de atividade caminha a par com o dinamismo dos seguros de saúde. Em outubro soube-se que já há 4 milhões de pessoas com seguros privados de saúde. Se a estes acrescentarmos 1 milhão e meio de pessoas com subsistemas públicos de saúde, há mais de 50% dos portugueses que têm uma segunda cobertura em saúde, conseguindo assim ter mais capacidade de escolha do prestador.
Há que dizer que esta relação reforçada entre prestadores e seguradoras traz um mútuo incentivo à eficiência e é benéfica para todo o ecossistema da saúde porque permite poupanças ao sistema público, alarga a oferta e o acesso a cuidados de saúde aos cidadãos, permite introduzir inovação e assumir uma perspectiva de ciclo de vida. Já a relação entre o SNS e os prestadores privados tem vindo a definhar e, apesar (ou por causa?) do ruído político, não há hoje nem mais uma consulta ou cirurgia feita pelo privado para o SNS do que há um ano.
Os hospitais privados representam hoje cerca de um terço da capacidade e atividade hospitalar do país e podem fazer mais, nomeadamente se se abandonar a visão de trincheira em prol das soluções que otimizem os recursos existentes e o façam de uma forma inclusiva.
No bom caminho este ano estiveram as portarias que uniformizam as regras de licenciamento seja para o SNS, como para os privados e o social e o diploma que enquadra o investimento em equipamentos médicos pesados.
As reformas que há que fazer
Com toda esta dinâmica e evolução, o sistema de saúde português (ainda) enfrenta enormes desafios.
Em Portugal e no mundo a maior preocupação prende-se com os recursos humanos. Precisamos de mais profissionais de saúde (a OCDE diz que faltam 1,2 milhões de médicos e enfermeiros na Europa). É mesmo necessário que percebamos que este problema é gravíssimo, tende a agravar-se e as medidas de mitigação não são imediatas tendo em conta o percurso de formação.
A transição digital tem um enorme potencial na saúde (e também riscos) pelo que é da máxima importância que os investimentos sejam realizados e que o funcionamento das diversas entidades absorva esta realidade (telesaúde, novas funções e competências, preditivividade e IA). No caso concreto da UE, está em desenvolvimento o Espaço Europeu de Dados de Saúde e o modelo que é necessário construir para que, salvaguardando as questões da privacidade e da vontade do cidadão, a informação clínica possa ser acedida em qualquer Estado-membro. A componente tecnológica depende de opções políticas e conceptuais pelo que há um longo caminho a percorrer até termos a desejada interoperabilidade.
2024 foi também o ano de inicio de um novo ciclo europeu, com um novo Parlamento Europeu e nova Comissão Europeia (com um comissário húngaro para a Saúde), em que uma das prioridades é a da cibersegurança nos hospitais e clínicas.
Em suma, é o futuro que nos impele para a reforma porque sem adaptações à mudança e sem tirarmos proveito das novas capacidades (tecnológicas, de conhecimento) os problemas só tendem a agravar-se.
A sustentabilidade do sistema de saúde depende de todos nós.