Num ano tão marcado pelo sangue, pelas guerras e pelo ódio e tensão crescentes pelo mundo fora – factos que este jornal reportou em quase todos os dias que preencheram 2024 – seria de esperar que o Governo de Luís Montenegro não resvalasse tão precipitadamente para políticas agressivas e securitárias (a antítese de políticas de imigração) que revelam uma alarmante ou suspeita falta de respeito por uma das traves-mestras que sustenta o Estado de direito: a igualdade entre pessoas.

O arrastão policial da semana passada na rua do Benformoso, em Lisboa, expôs os piores extintos de um Governo de centro-direita que, em crise de identidade, incentivada ou empolada pela ausência de uma maioria absoluta no Parlamento, escolheu correr atrás de fantasmas (os imigrantes) em vez de iniciar o difícil processo de sarar a ferida deixada a gangrenar anos e anos a fio pelos governos de António Costa. Se o centro-direita segue hoje o lastro da direita radical numa espécie de atracção pelo abismo, o centro-esquerda faz o caminho inverso, embora para a outra banda ideológica. No caso da esquerda radical, a atracção é também ela fatal. Uns vivem num mundo do diabo, os outros na Alice no País das Maravilhas. Ambos estão errados.

O centro político é hoje a terra de ninguém, apesar de ser precisamente este o território mais fértil ao compromisso e à procura de entendimentos. Na verdade, se há assunto em que o compromisso encontra sempre as melhores políticas é mesmo o da imigração, porque nada é preto e branco, há sempre matizes, tonalidades diferentes.

Tendo Portugal capacidade económica para o fazer, embora dentro de uma certa escala, devemos dar resposta aos casos humanitários mais graves, uma obrigação ética – mas não devemos olhar para a questão apenas através deste ângulo fechado. A pobreza também é uma catástrofe, faz milhões de vítimas e isso tem de ser tido em conta pelos decisores políticos no momento de gerir os fluxos migratórios.

Não se trata de agradar à turba dos comícios e das arruadas, embora elas tenham a sua graça: do que falamos aqui é de construir um país onde vivem pessoas que compreendem a importância da solidariedade na construção dos projectos de vida individuais e colectivos. Sem os outros somos o quê exactamente?

Por outro lado, devemos também perceber que dificilmente Portugal cresceria
e seria capaz de se desenvolver sem o contributo dos imigrantes, essenciais para
o equilíbrio actual e futuro da Segurança Social. Em 2022, eles – não o eles satânico do Chega – contribuíram com 1,8 mil milhões de euros para este sistema de protecção, tendo beneficiado em apenas 257 milhões de euros; dinheiro convertido em prestações sociais.

O valor das contribuições é sete vezes superior aos das prestações recebidas, o que significa que o saldo dos imigrantes é positivo em 1,6 mil milhões, mais do dobro do total do orçamento público para a Cultura – 824 milhões em 2025. Não é coisa pouca. No ano passado, as contribuições para a Segurança Social foram as mais altas de sempre: subiram 44% em comparação com 2022.

Se é verdade que em 2023 entraram quase 300 mil imigrantes, um valor que apanha qualquer nação desprevenida – é óbvio que um país de portas escancaradas não funciona – este crescimento súbito deve ser acompanhado pela referência aos impostos cobrados e à Segurança Social paga por este grupo de pessoas que trabalha.

Existindo vantagens óbvias para os imigrantes – emprego mais bem pago, mais segurança e oportunidades, menos desigualdade, melhores serviços públicos, uma sociedade menos patriarcal, o que é chave para a vida das mulheres – Portugal também colhe os benefícios de ter mais população a criar riqueza, pessoas que têm mais filhos
e que ocupam profissões que os portugueses não querem.

Há 50 mil tarefeiros – Uber, Glovo e afins – isto é, há pouca gente qualificada a chegar
do estrangeiro. É verdade, mas esse é um problema do país, ainda com muita dificuldade em atrair pessoas mais qualificadas e mais bem pagas, embora esse caminho esteja
a ser feito.

A uber economia não é certamente um problema dos imigrantes de baixos salários,
é tão-só uma questão de competitividade nacional e de este ser um problema que ainda vai demorar a ser resolvido. Quando finalmente olharmos para a produtividade, fazendo-a aumentar, e não apenas fixarmos o olhar no crescimento dos salários, a via ficará provavelmente mais desimpedida.

Um exemplo? A Hovione, a farmacêutica portuguesa – com quem em tempos trabalhei – exporta 100% da produção e tem capacidade para contratar pessoas de grande qualidade no mercado global.

O atraso burocrático

Num momento em que ainda se acumulam nas secretarias do Estado mais de 400 mil processos de regularização – a penosa herança da extinção precipitada do SEF –, o actual Governo tinha todas as cartas na mão para mostrar aos portugueses, e em particular ao PS, como se legalizam e acolhem imigrantes da maneira mais certeira e humana possível.

Apesar de ter apresentado 41 medidas para iniciar este processo, algumas delas certeiras, outras vagas, umas quantas a exigir a colaboração das empresas para que realmente ganhem tracção, foi a decisão de fazer uma rusga apenas com pretensões propagandísticas que acabou por marcar, embora não a definir, estes nove meses de governação.

Resumir tudo o que foi feito a uma medida errada e violenta é certamente injusto – mas a marca está lá e só o tempo nos ajudará a perceber se Luís Montenegro e os seus marketeiros querem descer ravina abaixo sempre a acelerar ou se o disparate do Martim Moniz foi apenas um mau momento, um entalanço a não repetir e até a corrigir.

Não há muitas dúvidas que parte dos portugueses aplaudiu a encenação contra os imigrantes do subcontinente indiano. Nalguns casos, por autodefesa (não sei bem do quê), noutros por racismo, seja ele de que grau for; em todos os casos, destaca-se sempre a falta de cultura e a ignorância que estreitam o pensamento e lixam as sinapses.

Estas pessoas – e são muitas – deveriam lembrar-se dos portugueses que, nos anos 60
e 70 do século passado, emigraram para França e foram viver (sobreviver) para os bairros de lata. As fotografias de Gérald Bloncourt retratam a brutalidade da vida nos bidonvilles. Talvez a ministra da Cultura possa fazer uma grande exposição sobre este assunto em 2025, talvez as dificuldades sentidas por milhares e milhares de portugueses em Paris, mas também em dezenas de outras cidades pelo mundo fora, consigam abrir um caminho qualquer na cabeça de quem tanto rosna contra a imigração sem saber do que está a falar.

Quem são?

Claro, somos um país de emigrantes que agora também passou a receber imigração. Mas quem são estas pessoas? Eis o instantâneo tirado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos: em 2022 havia quase 800 mil estrangeiros em Portugal – 76% dos quais originários de países extracomunitários –, perto do dobro do registado há dez anos; a taxa de desemprego da população estrangeira era mais do dobro da média nacional; em 2021, os trabalhadores estrangeiros ganhavam, em média, menos 94 euros mensais do que a média nacional; sempre em 2022, um em cada três estrangeiros em Portugal vivia em risco de pobreza ou exclusão social; nos últimos 15 anos, perto de meio milhão de estrangeiros obtiveram nacionalidade portuguesa; em 2022, entraram em Portugal 118 mil, mas em 2023 esse número saltou para os tais 300 mil.

A imigração traz problemas, claro. Quanto mais distante a cultura, mais difícil é a integração. O Estado tem aqui um papel a desempenhar. Nesta área, os franceses, os belgas e os holandeses cometeram todos os erros e estão a pagar muito caro por isso – podemos aprender com eles. Limitar o número de imigrantes é relevante, mas não há valor mágico, é precioso trabalhar seriamente no assunto envolvendo as organizações patronais e os sindicatos – Luís Paes Antunes, presidente do CES (Conselho Económico e Social) poderia ser uma alavanca importante. Será que lhe interessa? Quanto ao resto, é como tratar dos dentes: é preciso manter a higiene diária e não beber do cálice envenenado de André Ventura. O primeiro-ministro tem de perceber depressa que jamais ultrapassará o Chega pela extrema-direita. Vai ser preciso uma abordagem mais fina e substantiva para ganhar o duelo pela civilização – é isso que está em jogo.