A Alemanha é, segundo o Índice de Democracia da “Economist” relativo a 2023, uma democracia perfeita, atingindo uma pontuação de 8,80 em 10, embora apenas com 8,13 pontos na cultura política. Um dado que, no entanto, permite perceber que, por norma, os partidos da mainstream colocam o interesse nacional acima dos interesses partidários. Um elemento a ter em conta na análise da conjuntura atual e da forma como a mesma irá evolucionar. Uma reflexão que urge começar por uma curta analepse.

Assim, não se pode dizer que a queda do Governo liderado por Olaf Scholz tenha apanhado os alemães de surpresa. De facto, a apresentação da moção de confiança e a consequente rejeição parlamentar eram inevitáveis a partir do momento em que o chanceler do SPD [Partido Social-democrata da Alemanha, na sigla alemã) demitiu o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder do FDP, um dos três parceiros da coligação governamental. Aliás, também essa demissão era previsível face à obstinação de Lindner no cumprimento do limite de endividamento público anual de 0,35% do PIB [produto interno bruto]. Uma posição que impedia Scholz de injetar os fundos públicos necessários para alavancar a recuperação de uma economia estagnada.

De facto, o fraco desempenho por parte da maior economia da União Europeia e a chegada de um número elevado de refugiados e imigrantes, maioritariamente muçulmanos, juntamente com o cansaço resultante do prolongado e oneroso apoio militar à Ucrânia, ajudam a explicar o crescimento do populismo. Por isso, a Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido populista cultural ou identitário, que já constitui a terceira força no Bundestag, ganhou a eleição no estado da Turíngia e ficou em segundo lugar nos estados da Saxónia e de Brandemburgo. Daí que um outro partido populista, a Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), que mistura o populismo socioeconómico no que concerne à economia com o populismo identitário relativamente à imigração e às políticas de género, venha a revelar um crescimento, embora menos assinalável do que a AfD.

Em sentido oposto, é de assinalar que outro partido populista, mas socioeconómico, Die Linke, atravessa uma crise de afirmação decorrente da saída de figuras como Wagenknecht, não parecendo abusivo dizer que o partido está a esvaziar-se por, ao contrário da BSW, não ter abraçado a ideologia nacionalista sem rejeitar o socialismo.

Com a queda do executivo, as sondagens apontam para um cenário marcado por cinco quase certezas:

1.º Os eleitores irão penalizar o Partido Liberal Democrata (FDP), que poderá não atingir a cláusula-barreira dos 5% e não eleger três deputados individuais, deixando de ter representação parlamentar, responsabilizando-o pela queda do executivo.

2.º O eleitorado também castigará o SPD, acusando Scholz de não ter capacidade de liderança para inverter o retrocesso, não apenas económico, do país.

3.º A união da União Democrata Cristã (CDU) com a sua congénere União Social Cristã (CSU), que só concorre na Baviera, sairá vencedora, mas sem maioria absoluta e com um líder, Friedrich Merz, que goza de um baixo nível de popularidade.

4.º Dois dos partidos populistas, a AfD e a BSW, continuarão a crescer, e a AfD deve tornar-se o segundo partido com mais representantes no Bundestag, ao contrário do enfraquecimento eleitoral do Die Linke.

5.º Os Verdes, um dos três partidos da extinta coligação, perceberam que alguma moderação nas suas posições relativamente à proteção climática colhe junto do eleitorado e, como tal, o seu ex-vice-chanceler, Robert Habeck, irá beneficiar das propostas visando a proteção climática, mas socialmente responsável.

A estes elementos deve ser acrescentada a recente alteração da lei eleitoral que influenciará, de modo significativo, a futura composição do Bundestag. Matéria que justifica uma breve explicação do sistema eleitoral alemão.

Assim, este sistema é misto, dispondo o eleitor de dois votos: um para eleger o candidato do seu círculo eleitoral e outro para votar no partido ou na legenda. Uma mistura do método maioritário a uma volta, responsável pela eleição de 299 deputados, com o método proporcional, fórmula de Sainte-Laguë, que deveria eleger os restantes 299, ficando o Bundestag com 598 lugares. Algo que não acontecia porque existiam mandatos-extra para garantir a proporcionalidade sempre que um partido obtivesse mais votos na legenda do que na eleição individual. Ora, a eleição de 2025 já obedecerá à legislação que reduzirá o número de deputados do Bundestag dos atuais 733 para apenas 630, diminuindo o número de mandatos-extra.

O cruzamento deste dado com os estudos de opinião deixa perceber que apenas Friedrich Merz, candidato a chanceler da CDU/CSU, terá hipótese de liderar o novo executivo. Porém, a formação da coligação governamental não se afigura fácil. Uma dificuldade que aumentará no caso, muito previsível, de o parceiro tradicional da CDU/CSU, o FDP, não lograr representação parlamentar ou, se essa representação ficar aquém do valor para permitir uma maioria absoluta.

Como Merz não aceita coligar-se com partidos populistas, mantendo o cordão sanitário, e como a tradição aponta para governos de coligação e não para executivos de maioria relativa, a primeira alternativa talvez passe pela coligação com os Verdes, se o número conjunto de deputados atingir a maioria absoluta. Só que a proposta de Habeck de um imposto sobre os 249 bilionários alemães não colhe junto da ultraconservadora CSU, para além de os Verdes não parecerem dispor de plasticidade para aceitar a reversão de medidas tomadas pelo Governo de que fizeram parte, como a redução dos prazos para aquisição de cidadania alemã e as facilidades visando a mudança legal de género.

Daí que a solução mais viável seja a reedição da “Grande Coligação”, experimentada por duas vezes por Angela Merkel e Martin Schulz como a única saída para resolver o impasse governativo e viabilizar os executivos liderados por Merkel. Um processo que pode ser ainda mais demorado do que aquele que ocorreu em 2017, quando o SPD se sentiu no dever de auscultar os seus membros, tendo 66,02% votado a favor da reedição da “Grande Coligação”. Uma solução que, na atualidade, até pode colher junto do SPD, uma vez que as experiências anteriores não obedeceram ao denominado “abraço de urso”, pois o partido logrou regressar à liderança do executivo da “Coligação Semáforo” em 2021. Afinal, o SPD – com ou sem Olaf Scholz – pode tirar proveito de Merz não ser Merkel.

É claro que Alice Weidel, a candidata a chanceler proposta pela AfD, tudo fará para capitalizar o previsível crescimento eleitoral no intuito de integrar a coligação governamental. O facto de o Presidente da vizinha Áustria ter convidado Herbert Kickl, líder do Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ), para formar Governo, possivelmente em coligação com um partido conservador, poderá servir de argumento. Só que para além dos escândalos financeiros em que Weidel se envolveu – e que narrei no livro “A Europa e os Novíssimos Príncipes. Os Escândalos Populistas”os alemães sabem que os serviços secretos estão a investigar a ligação da AfD a movimentos de extrema-direita de ideologia nazi.

Face ao exposto, apesar da previsível influência do sharp power russo e do apoio de Elon Musk à AfD, a luta entre a cultura democrática e o populismo deverá cair para o lado da primeira. Pelo menos por enquanto porque os populistas são peritos na estratégia de vitimização e não desperdiçam a mínima oportunidade de capitalizar situações que levem à quebra de confiança dos cidadãos nas instituições.