Esta semana, o meio literário foi abalado por novos relatos detalhados sobre o autor best-seller Neil Gaiman e os abusos sexuais que terá cometido contra várias mulheres. O artigo publicado na “Vulture” é uma leitura difícil, perturbante e envolve pormenores explícitos sobre as agressões do autor, a cumplicidade da sua ex-mulher e o aproveitamento que ambos faziam de mulheres frágeis e em situações vulneráveis.
Embora o autor continue a afirmar que todas as relações eram consensuais, torna-se difícil ignorar a avalanche de denúncias e alegações. Durante décadas, Gaiman alimentou nas redes sociais uma persona pública acessível, que gostava de comunicar com os fãs através do seu blogue, e-mail, redes sociais e nas convenções em que participou em todo o mundo.
Gaiman conseguiu construir, com imenso cuidado e manipulação, uma figura pública enganosa, tornando-se estimado e reconhecido por colegas e leitores. Desde que começaram as denúncias do movimento MeToo que temos sido confrontados com esse dilema, o qual é ainda mais doloroso quando se trata de artistas que admiramos.
Esta crónica poderia ser sobre o que separa o homem e o artista… A verdade é que, no caso de Gaiman, é impossível voltar a ler a sua obra de uma forma isenta. As suas histórias estão repletas de homens monstruosos que cometem atos imperdoáveis e interrogo-me se Gaiman não estaria a escrever sobre si próprio.
À semelhança de um líder de culto (Gaiman terá sido abusado pelos líderes da Cientologia na infância, de acordo com o artigo), o autor montou, ao longo dos anos, uma fachada em que se assumia como feminista e defensor das causas das mulheres. Apresentava-se como um homem progressista que sabia como lidar com questões sensíveis de igualdade de género e discriminação. Os relatos dos últimos anos, contudo, revelam uma pessoa sórdida. Um manipulador e um monstro. Muitos agora denunciam as suas relações irresponsáveis com jovens mulheres fãs e que terão começado há muitos anos.
Esta crónica não separa o homem do artista. Antes aponta à hipocrisia de homens como Gaiman, que se tornam campeões das causas feministas quando, afinal, são uma gigantesca fraude. É revoltante e repugnante que continue a haver tantos homens a recorrerem a mentiras descaradas para ganharem respeito e admiração.
Mas importa perguntar por que razão continuamos a sentir necessidade de admirar essas pessoas, como se estivessem a fazer um favor ao mundo, quando são as mulheres que têm de ser o foco em questões feministas?