O que começou por ser um milagre tem vindo a tornar-se uma ameaça. A Internet é seguramente um dos maiores desafios que as sociedades modernas têm pela frente, e é-o por serem inúmeros os riscos a ela associados e que têm vindo a crescer – não obstante ser uma ferramenta miraculosa e fundamental se bem utilizada.

Neste artigo fala-se de um desses riscos: o da dependência digital.

Estima-se que os portugueses passem uma média de dez horas por dia na Internet, ou seja, mais tempo ligados à rede do que a dormir — e a Covid só veio a aprofundar esta tendência.

No quadro das perturbações relativas ao uso excessivo da Internet surgem, destacadas, as que estão associadas aos videojogos, já sinalizadas pela Organização Mundial da Saúde como Gaming Disorder. A procura massificada deste tipo de “entretenimento” leva a que, hoje, a indústria dos videojogos seja mais lucrativa do que a cinematográfica ou do que a da música.

O jogo patológico como alteração do comportamento humano é reconhecido como transtorno psiquiátrico desde 1980 pela Associação Americana de Psiquiatria, que, anos mais tarde, em 2013, definiria nove sinais de alarme, bastando que alguém manifestasse cinco ou mais dos seguintes sinais, durante o último ano, para o diagnóstico de dependência ao videojogo ficasse confirmado:

1) interesse constante nos videojogos; 2) sintomas de privação quando não joga — irritabilidade, craving (ansiedade por jogar) ou tristeza; 3) necessidade crescente do tempo de jogo; 4) incapacidade de reduzir o tempo de jogo; 5) desinteresse em passatempos anteriores, devido ao videojogo; 6) manutenção do comportamento de jogo apesar da consciência do impacto negativo; 7) mentir sobre o tempo que gastou a jogar; 8) utilizar o jogo para lidar com emoções negativas (culpa, ansiedade, desamparo); 9) prejudicar ou perder relacionamentos significativos, emprego e oportunidades de carreira devido ao jogo.

Depois, há o fenómeno das redes sociais que estimula o chamado “falso eu”, no Facebook, Instagram e afins, ou nas aplicações de encontros, estas cada vez mais procuradas por todas as faixas etárias.

Para Jeanette Purvis, doutorada pela Universidade do Havai, em termos de condicionamento psicológico a interface do Tinder é construída para incentivar o deslizamento rápido através de um cronograma de recompensa de proporção variável, o que significa que possíveis correspondências serão dispersas aleatoriamente. “É o mesmo sistema de recompensa usado nos videojogos.”

Uma outra perturbação associada à Internet é a do cibersexo. Sob a designação de “perturbação do comportamento sexual compulsivo”, consta desde 2018 na lista de patologias da Organização Mundial da Saúde. Mas, muito antes dessa data, já a psicóloga Kimberly Young, fundadora do Center for Internet Addiction, no estado da Pensilvânia, havia deixado escrito: “Esta é a primeira vez na nossa história que temos algo tão sem censura nas nossas casas. Qualquer pessoa pode chegar a um material muito censurável premindo apenas algumas teclas os estudos sérios e com rigor são dispendiosos e demorados e só na última década foi possível estabelecer uma correlação entre o consumo de redes sociais e da Internet e o impacto que têm na atenção e na saúde mental — mesmo por acidente — e então torna-se difícil sair do site.”

Ainda a considerar, nesta panóplia ligada ao uso desregulado da Internet, a questão das compras à distância, que se estima poder afectar uma em cada 20 pessoas familiarizadas com o online. Müller, psicoterapeuta alemã, em artigo publicado no Daily Mail, chamou a atenção para o facto de ser uma realidade que, ainda não vista como tendo potencial para causar graves danos, não se relaciona apenas com o dinheiro que é gasto, “ainda que os compulsivos acabem, na sua maioria, endividados”. Cria muitas vezes graves problemas de relacionamento dentro da família.

Especialistas que estudam esta questão nomeiam a facilidade de acesso a um maior número e variedade de produtos com um único clique; a facilidade de comprar a qualquer hora e em qualquer lugar; o anonimato social e a falta de inibição associada; e ainda a natureza dinâmica do meio, que frequentemente gera tentações e estímulos repetidos, levando à sobrecarga cognitiva e à perda do autocontrolo.

Internet como gatilho

Entre os especialistas em adições online, é unânime que a Internet é um gatilho para situações de distúrbios de personalidade, e que o tratamento para a dependência digital deverá passar, nos casos mais complicados, por sessões de terapia.

“Sabemos que existe um conjunto de características psicológicas que favorecem, nuns mais do que noutros, fenómenos de natureza mais aditiva. E que a hiperatividade e o défice de atenção são comorbilidades muito associadas à utilização excessiva de videojogos, cujo estímulo tecnológico é muito rico”, defende o psicólogo Pedro Aires Fernandes.

Nos livros Educar na Curiosidade e Educar na Realidade, publicados pela Planeta, Catherine L’Ecuyer, doutorada em Psicologia da Educação, afirma que muitos erros foram cometidos desde o aparecimento das tecnologias. Facilitar o uso destas a crianças em idades precoces foi um deles: “Se as crianças forem expostas a um ecrã antes dos três anos, não serão capazes de transpor uma imagem a duas dimensões para o mundo tridimensional.”

Outro erro teve que ver, na sua opinião, com a permissividade no uso dos tablets e smartphones nas salas de aula, sem antes se terem colocado duas perguntas à indústria: “Estas ferramentas fazem sentido, do ponto de vista educativo? E têm, ou não, efeitos colaterais? O duplo ónus da prova foi deixado para os investigadores. Acontece que os estudos sérios e com rigor são dispendiosos e demorados e só na última década foi possível estabelecer uma correlação entre o consumo de redes sociais e da Internet e o impacto que têm na atenção e na saúde mental. Daí que vários países estejam a recuar neste campo e a não permitir smartphones e tablets nas aulas.”

Uma adição semelhante à da droga

Sendo que este tema – proibir para quebrar o impacto dos écrans em adolescentes – divide a classe médica. O psicólogo João Faria entende que nunca será por essa via, apontando os pais como os responsáveis pela forma como os mais novos lidam com os écrans. Exemplifica, relativamente aos videojogos: “Não ficarem fora da experiência, estarem por dentro, perceberem quais são os mecanismos que estão envolvidos no jogo, se tem propriedades aditivas, e desde cedo aplicarem regras muito claras de utilização em termos de tempo.”

Acontece que num tempo em que as famílias vivem cada vez mais deslaçadas e em que os próprios pais são quantas vezes, eles próprios, aditos online, a perspectiva de João Faria será facilmente olhada como uma utopia.

Ainda para mais quando está cientificamente provado que a adição ao jogo se cruza com a adição a substâncias como o álcool ou a droga. São as mesmas trajetórias neuronais que são ativadas, como a dopamina.

Estima-se que, em todo o mundo, mais de 3,5 mil milhões de pessoas acedam com regularidade aos videojogos, incluindo crianças, adolescentes, jovens e adultos. Uma popularidade que a indústria suscita e explora e que, infelizmente, traz muito pouco de bom.