Há uma semana vimos largas dezenas de cidadãos brasileiros, entre outras nacionalidades sul-americanas, todos deportados dos Estados Unidos, a aterrarem em solo brasileiro, na cidade de Manaus, e ainda assim, no seu próprio país, sem que tenham cometido algum crime, a serem forçados a descer do avião militar norte-americano que os transportava de mãos e pés acorrentados.
Antes desta administração Trump já sucedia que os repatriamentos aéreos incluíam algemas, que eram, contudo, removidas antes de os aviões aterrarem, talvez para salvar as aparências e não provocar a indignação de quem, desta feita, teve de assistir à humilhante caminhada de concidadãos com mãos e pés presos. Pode ter sido um acaso este incidente ter acontecido logo no primeiro voo de deportados por ordem do Presidente recém-eleito. Mas o certo é que é precisamente esta a mensagem de poder que tem importado a Donald Trump transmitir. Ter o poder de tratar indignamente deportados, mesmo já no território dos seus países de origem e diante das autoridades destes.
Demonstra assim quem manda, inequivocamente. Como bem sentiu Gustavo Petro, o Presidente da Colômbia, que quis medir forças recusando receber no seu território mais voos daqueles, mas que, depressa, arrepiou caminho quando, sem qualquer diplomacia, a diplomacia americana lhe impôs o castigo de 25% de taxas aduaneiras e que passariam a 50% se não alterasse a sua posição. Ao render-se incondicionalmente, depois de tudo o que disse, Petro, ainda que involuntariamente, deu uma tremenda ajuda a Trump, que fez o seu ponto: o poder é uma vantagem de que dispõe para ser usada politicamente com vista a mais vantagens. É a política do poder. E a ostentação desse poder – impondo sem apelo nem agravo a maneira como são repatriados os cidadãos deportados – serve o propósito de forçar o seu reconhecimento, goste-se ou não.
Este poder que faz por se demonstrar diante de outros, poder de alterar a realidade dos outros sem considerar o seu interesse e sem que possam responder, pelo menos na mesma medida é um padrão político e não um acidente deste início de mandato. Tornar este poder contundente ostensivo, mesmo se mais na forma de ameaça do que de uma acção efectiva, traz consequências reais muito palpáveis. No limite, conduz Estados soberanos à servidão voluntária.
E não há dúvida sobre este ser um padrão de actuação de Trump. É o poder de abandonar acordos internacionais, como os de Paris, interromper a ajuda humanitária e a assistência, desimplicar-se das instituições dedicadas à cooperação, como a OMS. É o poder de desconsiderar a ordem internacional sempre que não seja a que mais convém. É o poder de, mesmo domesticamente, tomar a lei como um mero constrangimento a ignorar, ou mesmo a violar, sempre que não for um instrumento de poder. É o poder de se pôr ele próprio, Donald Trump, acima da lei, a mostrar-se exemplo de líder carismático que encarna um poder que se quer absoluto.
É também o poder de dizer tudo o que vem à cabeça, indiferente à verdade, e à diferença entre verdade e mentira, poder de dizer ilimitado, que passa cinicamente por direito à liberdade de expressão (o que cá em Portugal muito ilustres cabeças fazem por não entender). É o poder de negar as alterações climáticas, usar linguagem ofensiva, verbalizar pretensões de conquistar territórios soberanos e aliados, afirmar que Gaza tem de “ser limpa” dos palestinianos (no que se concluiria, de vez, o projecto de Benjamin Netanyahu!).
Não faltam exemplos deste poder de dizer além de qualquer escrúpulo, não importa a agressão ou a inverdade contidas no que se diz. E é, finalmente, o poder económico a fazer uma guerra alternativa, taxas aduaneiras a ajoelhar aqueles que sofrem de maior dependência económica e a infligir golpes aos que, na sua independência, competem por poder.
Este poder sem escrúpulos toma quaisquer limites por tabus a deixar cair. E também é indiferente a considerações sobre igualdade e justiça, e ao respeito por entendimentos, compromissos, o equilíbrio alcançado por muitas mediações. Nesta política do poder, a única expressão que importa é a do próprio poder, e se ainda há uma ideia de equilíbrio, é pensada antes como forças a ajustar-se, um jogo de forças que se medem.
E é um poder sem mediações, bem correspondido pela acção política populista que tem por traço mais reconhecível precisamente a desmontagem de mediações, tomadas por entraves que atrapalham e diminuem o poder. O populista arroga-se a relação directa com o povo, a quem promete devolver poder através da remoção de quaisquer constrangimentos, mesmo que em algum momento no passado tenham resultado da vontade democrática.
É claro que não fora a impotência crescente nas democracias contemporâneas – a viverem um declínio pós-democrático desde o início do milénio (como bem notou o sociólogo Colin Crouch) – e os políticos populistas não encontrariam tantas oportunidades para iludir os despojados de soberania cidadã com a promessa de restituir o poder perdido, poder sobre as suas vidas, sobre os seus projectos e de os fazer cumprir.
A ilusão é evidente, todavia. O populista nada mais faz do que obter vantagens transitórias semeando adversidades perenes. A desigualdade é bem real, não pára de se sentir nos rendimentos, no acesso a uma habitação, a uma pensão mais tarde. Simplesmente, a luta contra a desigualdade está a perder o seu chão igualitário democrático, substituída pela luta por uma representação essencialista de cada um e dos que consigo formam uma identidade. A desigualdade perverte-se numa questão de exclusão de acesso dos outros, a começar pelos estrangeiros que procuram trabalho, os migrantes económicos e logo depois da xenofobia económica vem a outra, cultural, quanto não racista.
A memória dos integralismos ressoa. E a crença na força vital dos fascismos do século passado também ressoa. Um século não é nada na escala do tempo histórico. Elon Musk ou é completamente desprovido de inteligência política ou teria de saber que o gesto que fez era fascista.
Em contraste com a política do poder sem escrúpulo populista, a política da mediação não só contém o poder como complexifica os seus usos. São as mediações que a democracia levada a sério inclui. Democracia não é simplesmente a vontade agregada de todos (já Rousseau apontava a possibilidade de uma vontade de todos não ser uma vontade geral). Deve estabelecer modos e espaços de formação de vontade política. Não há genuína democracia se não for um Estado de direito democrático, com um afecto igualitário, como bem dizia Montesquieu.
A complexificação dos usos do poder, a pedir a contenção, o conhecimento a dizer cada vez mais o que não fazer, é também assunto em face do estado de emergência climática que vivemos e que o populista trata de negar, muito coerentemente comprometido apenas com o resultado a curto prazo, se não mesmo imediato, ultimato sobre ultimato, como se a realidade fosse docilmente dobrada à vontade instantânea de decretos executivos.
A política do poder é uma cartada de risco. Joga-se a vantagem mais danosa, que deixa como resíduo ressentimentos e indignação, quando não mesmo rancor. A sua racionalidade não se sustenta a prazo. Justifica a retaliação, e quando esta não é possível, dada a desproporção de poder, soam em surdina, como do fundo de um poço, promessas de desforço.
Em suma, a política de poder de Donald Trump, o quadro populista de política sem escrúpulo de poder, cada povo o direito a todo o poder de que dispõe, como a humanidade o direito a todos os recursos do planeta, como ao poderoso o direito a dizer tudo, humilhar, ser indiferente, pisar e passar por cima, esse é o caminho da guerra e da catástrofe.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.