A reconversão de solos rústicos em urbanos para habitação tem gerado um debate intenso. Embora esta medida vise mitigar a crise habitacional, levanta questões cruciais sobre os impactos ambientais, económicos e sociais. Um equilíbrio entre o desenvolvimento urbano e a conservação dos ecossistemas naturais é essencial para garantir um crescimento sustentável e a preservação dos recursos para as gerações futuras.
A Lei dos Solos: objetivos e pressupostos
A recente revisão desta lei, estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, introduziu um regime especial para a reclassificação de solos rústicos em urbanos, com o objetivo de aumentar a oferta habitacional em Portugal. Esta medida flexibiliza as regras de uso do solo, possibilitando que os municípios aprovem construções em áreas anteriormente restritas, desde que não comprometam algumas áreas críticas, tal como as abrangidas por programas ou planos especiais, a Reserva Ecológica Nacional (REN) ou os solos mais produtivos da Reserva Agrícola Nacional (RAN).
O pressuposto da lei é que o aumento da oferta de solo urbano faça baixar o seu preço, aumente a oferta da habitação e reduza os seus custos. E, enquanto exigência que se coloca a qualquer legislação, que o balanço entre os benefícios os custos que dela resultem seja positivo. Existem, no entanto, alguns riscos nestes pressupostos, quer na adequação dos mecanismos desenhados aos objetivos, quer na gestão do solo enquanto recurso natural.
O solo urbano e o preço da habitação
Não é evidente que o aumento da oferta de solo resulte em habitação a preços acessíveis. O Banco de Portugal, por exemplo, alerta para a especulação imobiliária, que pode beneficiar grandes investidores. E algumas experiências internacionais não são animadoras. Na Nova Zelândia, a revisão das normas de uso do solo em Auckland triplicou a capacidade habitacional, mas os preços continuaram a subir, dificultando o acesso à moradia para a população de rendimentos médios e baixos.
Também no Reino Unido, um estudo da London School of Economics mostrou que o aumento da construção não resultou numa redução proporcional dos preços devido à forte influência de investidores estrangeiros e fundos imobiliários no mercado. Ou seja, pode haver uma aposta continuada do mercado em segmentos de valor elevado ou no uso da habitação como um bem de investimento, mesmo perante uma redução do preço do solo. E, como tem sido amplamente demonstrado, a exigência legal de disponibilização de habitação de valor moderado, na atual formulação, pouco ou nenhum impacto terá nos preços praticados.
Em Portugal, Lisboa e Porto possuem milhares de edifícios devolutos ou subutilizados com potencial de reabilitação. A Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário estima que a recuperação destes imóveis poderia disponibilizar até 120 mil habitações, reduzindo a necessidade de converter solos rústicos. Dados da Direção-Geral do Território e do INE revelam vastas áreas urbanas não edificadas e edifícios inutilizados, sugerindo que a crise habitacional resulta menos da falta de terrenos do que da falta de investimento em habitação a preços compatíveis com os rendimentos da população.
Impactos ambientais e ecológicos
A reconversão de solos rústicos pode gerar impactos ambientais significativos. Desde logo, os solos rústicos dentro das áreas urbanas desempenham funções ecológicas essenciais, regulando o microclima das cidades, atuando como sumidouros de carbono e melhorando a qualidade do ar. Também facilitam a infiltração de água no solo, reduzindo o risco de cheias e contribuindo para a recarga de aquíferos subterrâneos. Ao serem urbanizadas, estas funções ecológicas são perdidas, aumentando a vulnerabilidade a eventos climáticos extremos, como inundações e secas, e comprometendo a segurança hídrica. Além disso, a expansão urbana pode resultar na fragmentação de corredores ecológicos, comprometendo a mobilidade de espécies e a resiliência ambiental a longo prazo.
Outros custos possíveis com a conversão de solos rústicos para urbanos são: Custos Ambientais Ocultos – A destruição de áreas naturais pode levar a um aumento nas despesas públicas com adaptação climática, como a necessidade de construir infraestruturas de drenagem artificial para compensar a perda de solos permeáveis; Impacto na Saúde – A perda de espaços verdes urbanos está associada ao aumento de problemas respiratórios e cardiovasculares devido à pior qualidade do ar e ao efeito de ilha de calor urbana. Diminuição do Valor Económico da Biodiversidade – Solos rústicos dentro das cidades proporcionam habitats para espécies que contribuem para a regulação de pragas agrícolas e polinização, serviços ecossistémicos com valor económico substancial.
A possibilidade de urbanização fora dos atuais perímetros urbanos levanta também o risco da dispersão. Este modo de ocupação acarreta um uso acrescido de recursos com infraestruturas públicas, incluindo redes de água, saneamento, eletricidade ou transporte, a um maior recurso ao transporte individual motorizado e, criticamente, exacerba a destruição de habitats naturais e a perda de serviços de ecossistema essenciais.
Acresce que este modelo ameaça a valorização económica da paisagem. Ao aumentar a poder discricionário de cada proprietário, cria-se um efeito de mosaico, que desvaloriza o território como um todo. Um exemplo claro disso é o impacto da construção desordenada em áreas costeiras: uma colina sem edificações à beira-mar pode valorizar as propriedades em redor, enquanto a ocupação desorganizada reduz o valor imobiliário e pode afetar negativamente a atividade turística. Caso o valor económico gerado pelas novas construções seja inferior ao valor perdido nas restantes atividades afetadas, podemos mesmo deparar-nos com uma tragédia dos privados, onde a procura do interesse individual resulta num impacto coletivo negativo.
Conclusão
A revisão da Lei dos Solos pode criar oportunidades, mas exige uma abordagem cuidadosa. Embora possa aumentar a oferta de habitação, o seu sucesso dependerá de uma estratégia que combata a especulação imobiliária e promova soluções habitacionais sustentáveis. Sem medidas complementares, a reclassificação de terrenos pode beneficiar apenas o setor imobiliário, sem resolver a escassez de habitação acessível.
E é crucial considerar as consequências ambientais desta revisão. Por um lado, devem-se internalizar uma parte dos custos ambientais gerados. Isto poderia ser feito através mecanismos como os impostos sobre a conversão de terrenos, os pagamentos por serviços ambientais ou as compensações ecológicas exigidas a promotores imobiliários.
Por outro lado, deve-se também limitar o impacto ambiental. Neste sentido, devem ser estabelecidos limites rigorosos à impermeabilização dos solos e à fragmentação dos ecossistemas, protegendo corredores ecológicos para garantir a continuidade dos habitats.
A criação de infraestruturas verdes – parques urbanos, corredores ecológicos e zonas de amortecimento – pode reduzir os impactos negativos da fragmentação e equilibrar o crescimento urbano com a conservação ambiental. Deve-se ainda priorizar a consolidação e expansão dos núcleos urbanos existentes.
Ainda que a atual lei se comprometa com objetivos de salvaguarda dos recursos naturais e de consolidação urbana, a atual formulação não dá garantias suficientes. É essencial garantir uma monitorização contínua, ajustando políticas sempre que necessário. Apenas com um compromisso firme com a sustentabilidade e o direito à habitação será possível garantir que esta reforma beneficie toda a sociedade.