No passado dia 21, a revista italiana “L’Espresso” publicou uma investigação sobre as pouco salubres ligações entre o actual governo italiano e o regime cleptocrático russo. Aparentemente, a organização criminosa chefiada pelo antigo agente do KGB Vladimir Putin estará a usar uma empresa de combustíveis russa para canalizar dinheiro para o partido de Matteo Salvini, ministro do Interior de Itália e líder espiritual do governo partilhado pelo M5S e a Lega (o partido de Salvini).
A operação terá sido negociada através de uma “associação cultural” liderada por Gianluca Savoini, antigo porta-voz de Salvini e sua companhia em reuniões com “políticos” russos. A revista detalhava ainda uma série de outras relações suspeitas entre “homens de negócios” italianos e “oligarcas” russos ligados ao regime do seu país.
O trabalho da revista italiana, como seria de esperar, não teve grande atenção por cá. No entanto, era bom que tivesse tido, pela simples razão de que o que está em causa é a política russa de promover a instabilidade política nos países da NATO e da União Europeia.
Numa das suas mais recentes crónicas no “Público”, Vasco Pulido Valente (senhor que muito aprecio) escrevia que “o que está em jogo entre a ‘Europa’ e a Rússia é a Ucrânia e o Báltico. Uma guerra que só interessa à Alemanha e que, definitivamente, não interessa à América”.
Pulido Valente tem razão no sentido em que a Rússia está preocupada com a expansão da influência “ocidental” (através da NATO e da UE) até às suas fronteiras, em que para muitos países europeus o medo que a Estónia ou a Letónia têm de acções hostis (ou de uma invasão) russas é algo de distante ou inconsequente, ou em que a crescente retracção da política externa americana faz com que estes problemas mereçam cada vez menos a atenção da potência que, na prática, tem defendido a “Europa” das ameaças que sobre ela vão pairando.
No entanto, “entre a Europa e a Rússia” algo mais “está em jogo”: a percepção que Putin tem de que a sobrevivência do poder do seu gangue depende da perturbação da vida democrática nos países da NATO e da UE.
A Rússia e a sua população enfrentam hoje enormes dificuldades económicas, e o próprio Putin parece estar cada vez mais frágil politicamente. Ao interferir com sucesso na política interna de países como os EUA ou a Itália, Putin consegue passar uma imagem de manipulador invencível junto da população, e pintar (sem grande esforço) o “Ocidente” como uma colecção de líderes fracos e sem inteligência para o enfrentar, o que por sua vez lhe permite apresentar a democracia ocidental como a razão dessa fraqueza, e como tal um argumento a favor do seu governo autoritário.
A propaganda russa (basta ver a RT) precisa de passar a ideia de que a democracia dos EUA ou dos países europeus é tão disfuncional e corrupta como o disfuncional e corrupto autoritarismo que Putin comanda, legitimando-o através da deslegitimação do modelo do “Ocidente decadente”. E se pelo caminho conseguir que alguns eleitores desses países ocidentais se deixem levar por essa mesma deslegitimação dos regimes democráticos onde vivem, dando o seu apoio a líderes nacionalistas, autoritários e corruptos que adoptam as linhas da política externa russa, melhor ainda.
A “proximidade” da Lega à Rússia é antiga e conhecida: o partido é um parceiro formal do partido de Putin, Salvini declarou o seu apoio à “reeleição” do presidente russo, negou a responsabilidade do Kremlin no envenenamento do “traidor” Sergei Skripal em solo britânico, o seu partido defendeu o reconhecimento formal da anexação russa da Crimeia, e (como o M5S) tem-se oposto às sanções europeias contra o regime russo. Não é por isso de espantar que tenha sido a Itália a bloquear uma posição conjunta da UE contra o regime de Maduro na Venezuela, protegido por Putin.
Como também não é de espantar que, recentemente, o ministro (do M5S) Luigi Di Maio tenha dado o seu apoio público aos “coletes amarelos” franceses, um movimento exclusivamente interessado em minar qualquer autoridade política num importante país da UE: em ambos os casos, o governo italiano contribui para o objectivo de Putin de dividir a União Europeia e a NATO e procurar a sua desintegração, não só como forma de ter rédea solta na sua vizinhança mas como arma de propaganda interna, para consolidar o seu poder e aumentar a sua fortuna pessoal.
Para todos os efeitos práticos, personagens como Salvini, Di Maio, Trump ou a rapaziada do Podemos ou do Syriza não passam de “toupeiras” que, quer tenham consciência do papel que desempenham ou não passem de “idiotas úteis”, servem, a partir do coração da UE e da NATO, os interesses políticos do crime organizado em torno de Putin.
Se acharmos que a NATO e a UE são importantes para a estabilidade da democracia portuguesa e para melhorar as nossas condições de vida, como eu acho que são, então aquilo que a Rússia faz – de Tallin a Washington – para fragilizar a saúde dos nossos aliados e parceiros é algo que nos deve preocupar, e muito. Infelizmente, não se ouve qualquer partido português a tratar este problema com a gravidade que ele tem, e há até quem – como o PCP – nunca se abstenha de alinhar com a política externa de Putin. Lá saberão porquê, e com que objectivos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.