O recente relatório do Conselho Superior da Magistratura (CSM) sobre medidas para combater a morosidade da justiça levanta muitas questões sobre o equilíbrio entre eficiência processual e garantias fundamentais.
O documento “Carta para a Celeridade e Melhor Justiça” apresenta propostas que merecem uma análise cuidadosa, pois sob o pretexto de agilizar processos, estas propostas podem colocar em causa o direito inalienável de defesa dos cidadãos.
A sugestão de multar Advogados por alegada litigância de má-fé e instaurar processos disciplinares após duas condenações por manobras dilatórias é não só desproporcional, mas também perigosamente intimidatória.
É inaceitável que se procure responsabilizar os Advogados pelos atrasos na justiça.
Somos nós, os Advogados, os únicos que sistematicamente cumprem os prazos processuais, muitas vezes enfrentando obstáculos criados pela própria máquina judicial.
A proposta de responsabilizar os Advogados pelos atrasos na justiça não apenas simplifica uma questão complexa, mas também ignora as múltiplas causas da morosidade judicial.
Necessidade de uma abordagem holística
O caminho para uma justiça mais célere não pode passar por apontar o dedo a um dos agentes do sistema judicial. Atacar os Advogados é desviar a atenção dos verdadeiros problemas estruturais que afligem a nossa justiça.
Para compreender a magnitude do problema, examinemos alguns dos processos judiciais mais mediáticos e prolongados, que servem como exemplos emblemáticos da morosidade no sistema judicial português:
- A Operação Marquês, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, já se arrasta há mais de 11 anos e só agora, em 2025, chegará à fase de julgamento.
- O processo BES/GES, mais de uma década após o colapso do grupo em agosto de 2014, iniciou finalmente o seu julgamento em outubro de 2024, com Ricardo Salgado como principal arguido.
- A Operação Tutti Frutti tem sido objeto de investigação desde 2018 e culminou com a acusação do Ministério Público contra 60 arguidos em fevereiro de 2025.
As razões para estes atrasos são diversas e incluem, nomeadamente:
- Falta de recursos humanos e materiais, incluindo procuradores e funcionários judiciais.
- Sistemas tecnológicos inadequados e falta de modernização dos tribunais.
- Complexidade de certos tipos de processos, especialmente os de criminalidade económica.
Impacto e consequências
A morosidade tem graves consequências:
- Nos Tribunais Administrativos, há processos que se arrastam por 10, 15, 20 e até 30 anos.
- Portugal é o quinto Estado-membro da UE com maior duração dos processos nos tribunais de primeira instância.
- Esta lentidão afeta a confiança no sistema judicial e pode desencorajar investimentos em Portugal.
Defesa intransigente das garantias fundamentais
As propostas do Conselho Superior da Magistratura (CSM), como a restrição da fase de instrução e a limitação de recursos, visam agilizar os processos, mas podem comprometer direitos fundamentais.
Essas medidas ameaçam o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo justo, pilares essenciais das sociedades democráticas. É fundamental equilibrar a eficiência com a proteção dos direitos dos cidadãos, garantindo que a busca por celeridade não comprometa os princípios que sustentam o sistema judicial.
O papel fundamental da Advocacia
É fundamental reafirmar o papel essencial dos Advogados na administração da justiça.
Somos nós que garantimos a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Qualquer tentativa de condicionar o nosso trabalho ou limitar a nossa independência é um ataque direto ao Estado de Direito.
Não podemos permitir que, sob o pretexto de combater a morosidade, se sacrifiquem direitos fundamentais.
É nosso dever profissional e ético opormo-nos veementemente a qualquer proposta que ameace as garantias de defesa dos cidadãos.
A reforma da justiça
O debate sobre a reforma da justiça deve incluir todas as vozes do sistema judicial. Somente através de um diálogo construtivo e inclusivo será possível encontrar soluções que atendam aos interesses da justiça e da sociedade como um todo. As propostas do CSM, embora bem-intencionadas, levantam preocupações sérias sobre o futuro da Advocacia e do direito de defesa em Portugal.
É imperativo que qualquer reforma do sistema judicial seja conduzida com cautela, respeitando os princípios fundamentais do Estado de Direito e garantindo que a busca pela celeridade não se faça às custas das garantias constitucionais dos cidadãos.
A Advocacia portuguesa tem uma longa e orgulhosa tradição de defesa dos direitos e liberdades. Neste momento é essencial que a classe se una para defender não apenas os seus interesses profissionais, mas sobretudo o direito fundamental de todos os cidadãos a um processo justo e equitativo.
O caminho para uma justiça melhor passa necessariamente pelo respeito mútuo entre todos os operadores do direito e pela preservação inabalável dos princípios que sustentam a nossa democracia.