Não me agradou nada ser acordado pela campainha estridente, bem cedo, naquele sábado de manhã. Vivia num dos pequenos apartamentos “de função”, no edifício da embaixada portuguesa em Luanda, onde estava colocado como diplomata, nesse início dos anos 80 do século passado.
Estremunhado com a chamada do porteiro, fui confrontado com a emergência que justificava aquele alarido: a mulher de um alto dignitário do regime angolano necessitava de um visto de entrada em Portugal, no seu passaporte diplomático, para poder embarcar para Lisboa, horas mais tarde. Era, de facto, a mim que competia executar essa tarefa, pelo que, em roupão, avancei para o meu gabinete, no andar imediatamente inferior, para emitir a autorização de entrada, solicitada na nota do Ministério das Relações Exteriores local.
O ato não seria mais do que uma rotina não fosse dar-se o caso do marido da senhora, precisamente na véspera, ter feito um discurso público, com forte eco na Televisão Popular de Angola, onde, por entre acusações várias ao governo português de então, se recomendava vivamente aos cidadãos angolanos que evitassem visitar Portugal nas suas férias, dando mesmo expressamente o nome do Brasil como um “país amigo” que deviam ter como alternativa. Eram assim os tempos de então.
Não sei se a minha irritação com o facto de ter sido acordado cedo me terá impedido de esboçar um sorriso interior com o caricato da contradição que tudo aquilo representava. Imagino que a minha idade de então me não tivesse conferido ainda a sabedoria para poder usufruir, em pleno, aquela ironia. Há juízos que só o tempo amadurece. E quando, há quatro ou cinco anos, me cruzei, na livraria do Apolo 70, em Lisboa, com aquela figura política angolana, confesso que não me senti minimamente tentado a relembrar-lhe o episódio.
Embora muita água tivesse corrido entretanto sob as pontes do Quanza, as relações entre Lisboa e Luanda andavam ainda tremidas, naquele ciclo de incidentes que, em Luanda, alimenta alguma lusofobia recorrente e que, por cá, enquistou numa espécie de superioridade neocolonial, assumida por algumas vestais com lugar cativo na comunicação social. Mas que fique claro: nós, deste lado, não estamos isentos de culpas no processo de tensão que se estabeleceu ao longo de todas estas décadas entre Angola e Portugal.
Lembrei-me disso e de muito mais quando, há dias, assisti à serena entrevista do atual presidente angolano à nossa televisão pública. Dei comigo a pensar naquele meu tempo de Luanda, em outros anos que lhe sucederam e no facto de João Lourenço ser tributário das lições que deles também terá retirado. Pergunto-me, aliás, se cada tempo não tem o seu tempo e se não devemos ter a humildade de pensar que, afinal, para chegar até hoje, foi necessário passar por todas aquelas traumáticas etapas do passado. É à luz desta mesma experiência que, com um voto de confiança e esperança no futuro, devemos ter o realismo de perceber que desse mesmo futuro será sempre a liberdade com que, queiramos ou não, acabará por nos surpreender.