Para compreender o lamaçal em que estamos atolados, importa ter consciência de alguns vícios que têm impregnado os partidos do ‘centrão’ e a mentalidade dos portugueses.

O episódio infame protagonizado por Montenegro, e que nos arrasta a todos para mais um arraial eleitoral, veio pôr em evidência alguns dos maiores males que contaminam a política portuguesa e que atrasam o desenvolvimento do país.

O primeiro vício mais óbvio é o despudor da classe dirigente que confia na sua capacidade de controlar a agenda mediática e de ludibriar as massas acríticas. Ao saberem que lidam com um povo pouco participativo e muito distraído, os titulares dos cargos políticos tendem a usar e abusar da sua sorte enquanto exercem os seus mandatos, especialmente quando existe prevalência de advogados e juristas nesta classe política. Ainda que a presença de bons juristas seja essencial ao bom funcionamento do Estado de Direito, é importante ter noção de que a familiaridade com os meandros legais, sobretudo numa sociedade com fraca participação cívica, também cria um ambiente propício a comportamentos oportunistas e à exploração de brechas legais em benefício próprio.

O que dizer, entretanto, do amadorismo demonstrado por Montenegro na forma como nem se preocupou em disfarçar a sua frutífera actividade empresarial? Será que acreditou que ninguém iria reparar, ou que ninguém se iria dar ao trabalho de lhe apontar a incompatibilidade? Terá agido assim por influência de décadas de mentalidade clientelista? Ou talvez tenha pensado que um breve mandato de quatro anos permitiria passar pelos pingos da chuva? Ou poderá ter pensado que, mesmo sendo apanhado, teria recursos jurídicos para se proteger de punições?

Independentemente do motivo que mais influenciou as suas decisões e postura neste caso, podemos dizer que o despudor do primeiro-ministro perante os portugueses, sobretudo depois de manifestar a vontade de voltar a ser candidato, roça a máxima insolência.

Um segundo vício da sociedade portuguesa, e que dá combustão àquele despudor dos tecnocratas, é a brandura das acusações e das indignações perante acções óbvias de distribuição de favores e privilégios. Num país tão pequeno e tão facilmente dominado pela profunda implantação das estruturas partidárias do PS e do PSD, a captura do Estado para facilitar os negócios particulares é uma prática muito disseminada e pouco criticada, ou seja, não escandaliza ninguém. Veja-se, aliás, como até a Iniciativa Liberal preferiu meter os seus princípios na gaveta e render-se ao argumento da estabilidade e da responsabilidade para bajular o Executivo e ficar nas boas graças do PSD.

Lamentavelmente, a revolta face ao tráfico de influências e actos ilícitos não é tanto uma expressão de defesa suprema da integridade das instituições e do interesse público, mas antes uma arma de arremesso usada no jogo partidário. Geralmente, as denúncias e breves momentos de indignação não vêm da sociedade civil, mas sim de agentes políticos que aguardam com expectativa a sua vez de açambarcar recursos e compadrios. São estes agentes que têm interesse em apressar a queda do concorrente que disputa consigo os despojos de um país amordaçado a um ciclo viciado de alternância no poder.

Mas esta alternância estafada dos partidos do centrão está pela hora da morte, sobretudo porque a sede de poder e os preconceitos ideológicos continuam a impedir um reajuste dos partidos aos novos tempos. Estes tempos exigem ultrapassar também um terceiro vício, a indefinição ideológica que tem inibido o crescimento de projectos e ideias à direita e que, aliás, tem sido método de sobrevivência do PSD num contexto em que toda a representação parlamentar se acobardava e pedia indulgência à esquerda moralista.

Mas para sair do lodo em que nos encontramos, não basta desenvolver ideias mais claras e distintas que rompam com aquele marasmo de indefinição e de distribuição de clientelas. É ainda necessário cultivar o respeito por figuras que liderem, agreguem e que consigam conquistar a admiração das pessoas pela dedicação ao devir nacional de longo prazo, e não pelo aumento de pensões, distribuição de passes gratuitos, de descontos na habitação ou de promessas demagógicas decalcadas das narrativas emitidas em Bruxelas.

Sim, é verdade que os portugueses têm uma inclinação para esperar um salvador providencial, mas esse clássico sebastianismo não tem de ser um traço necessariamente negativo. Além disso, esta tendência está longe de ser exclusiva dos portugueses e tem sustentação na experiência, como sugeriu o historiador Thomas Carlyle, ao apresentar a importância de líderes extraordinários no destino das nações e na superação de impasses. Talvez o sebastianismo seja tão persistente entre os portugueses, precisamente pela escassez de líderes mais empenhados no devir nacional do que na sua própria conveniência e vaidade.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.