É frequente apelidarmos Portugal como o país dos três “efes”: Fátima, futebol e fado. Um quase-lema do regime ditatorial do Estado Novo, que se tem vindo a mutar ao longo das últimas quatro décadas de democracia: por um lado, o catolicismo expresso na sinédoque de Fátima esbateu-se bastante (apesar do ainda evidente conservadorismo da população) e, por outro, o fado abriu asas, abraçou e foi abraçado noutras latitudes, e evoluiu para um fenómeno muito mais complexo e completo do que a tristeza cantada ao som da guitarra portuguesa. Já o futebol… bem, o futebol enraizou-se ainda mais, açambarcando até o que seriam os papéis do fado (cultura) e de Fátima (religião).
A semana passada, foi extraditado para território nacional o hacker da Football Leaks, o whistleblower conhecido virtualmente como “John”, mas cujo cartão de cidadão indica chamar-se Rui Pinto. Trata-se do pirata informático que ficou célebre em Portugal por, alegadamente, ter acedido aos servidores do Benfica, de onde retirou milhares de e-mails altamente comprometedores, mas que fez a sua primeira grande aparição (e pela qual agora responde à Justiça) ao hackar a Doyen, um fundo de investimentos com profundas ligações ao Sporting e ao FC Porto.
Além disso, tornou públicos documentos que indiciavam inúmeras práticas ilícitas de figuras altamente cotadas no mundo do futebol, muitas delas portuguesas, como Cristiano Ronaldo ou Mourinho, mas também de Messi, Neymar, Falcao ou Sergio Ramos.
Noutras áreas da sociedade, figuras como a de Rui Pinto são exaltadas como soldados da liberdade, defensores da justiça que, sem medo dos tubarões deste mundo, penetram nas suas casas-fortes, trazendo para a esfera pública os seus podres, numa luta pela igualdade e contra a corrupção. Basta olhar para os casos dos Panama Papers ou de Edward Snowden, ou, ainda mais emblemático, de Julian Assange, um homem acusado de violação na Suécia e uma clara marioneta do regime russo que, por divulgar documentos confidenciais, é elevado a um estatuto de semideus por uma facção considerável da população.
Mas é curioso que, em Portugal, Rui Pinto seja visto apenas como um perigoso criminoso, merecedor de todo e qualquer castigo possível.
É curioso que, ao contrário do que aconteceu em Espanha, onde o fisco arrecadou milhões com variadíssimos casos de tentativa de fuga fiscal no mundo do futebol, em Portugal o principal tramado nesta situação seja, imagine-se, quem a denuncia.
É curioso que, enquanto nos EUA se investigam alegações de violação por parte do nosso sagrado CR7, ou em França os e-mails obtidos pelo pirata são usados como prova, no nosso cantinho indivíduos como Paulo Gonçalves, César Boaventura, Alexandre Pinto da Costa ou Nélio Lucas continuem nos meandros do futebol, e continuem a encher os seus bolsos e os dos amigos com dinheiro, enquanto enchem a sociedade cívica de mentiras e manhas.
Não vou sequer mencionar as consequências desportivas destes casos, porque não é esse o ponto fulcral de toda esta questão. O que me incomoda é a falta de imparcialidade dos cidadãos na análise a esta situação; é a facilidade em ignorar que existem toupeiras no sistema judicial, só pela cor da camisola que vestem essas criaturas do subsolo; é a inaptidão e lentidão das autoridades competentes ao analisar estes esquemas de corrupção ou fuga de capitais, contrastando com a celeridade e insistência em extraditar um criminoso (sim, porque Rui Pinto cometeu vários crimes, independentemente da sua finalidade) que, claramente, estaria bem mais seguro num território menos futebolisticamente fundamentalista.
E, para juntar à festa, temos horas e horas de lixo televisivo, patrocinado por canais de suposta informação, com directos comentados por pseudo-especialistas (que nem para comentar futebol estão habilitados, quanto mais casos judiciais) à espera do avião em que chega o hacker, como se nos viesse visitar o Papa. Houve quem dissesse que “a religião é o ópio do povo”. No nosso caso, a religião é o futebol – e estamos perto da overdose.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.