O marido morreu há dois anos e ela nunca mais voltou a ser a mesma. No primeiro ano visitava-o com frequência no cemitério, mas começou a perder forças e deixava-se ficar em casa, rodeada de memórias. Após 43 anos de vida conjunta, não ter o marido ao seu lado era como ser desterrada para outro planeta.

O filho visitava-a com frequência. Tinha um estabelecimento comercial e trazia-lhe tudo o que precisasse. Era um descanso saber que ele tratava de todas as burocracias. Estava habituada a resolver tudo, presencialmente ou por telefone, mas, ultimamente, raramente conseguia ser atendida por uma pessoa e lidava mal com os assistentes digitais que a bombardeavam com perguntas.

Era raro ver a nora e a neta. Estão muito ocupadas com o trabalho e os estudos, dizia-lhe o filho. Os seus familiares eram naturais da Guarda e, nos últimos dez anos, os telefonemas tinham cessado, com a morte da única irmã. Uma vizinha tocava-lhe à porta e, por vezes, oferecia-lhe fruta e legumes, dizendo-lhe que estava muito magra.

Assegurou-lhe que a família cuidava dela. Mas, na verdade, a comida deixava-a agoniada. Começou a evitar saídas cansativas à rua. O médico receitou-lhe antidepressivos que nunca chegou a tomar. Uma vez, trouxeram-lhe papéis para assinar e explicaram-lhe que não queriam que ela se preocupasse com nada.

Começou a passar longas temporadas na cama, assolada pela solidão e tristeza. Uma vez, quando estava deitada, ouviu uma voz feminina. “A velha nunca mais morre”.

Foi então que percebeu. E chorou. As indisposições frequentes. O isolamento. Os papéis que lhe pediam para assinar. O olhar de pena da senhora do banco quando a informou que as suas poupanças, e do marido, tinham sido transferidas para outras contas. Nesse momento sentiu dor, raiva, humilhação e traição. Roubavam-lhe os bens e a vida.

A história desta mulher é a história de muitas pessoas idosas que estão a ser diariamente submetidas a uma violência silenciosa na sua própria casa, muitas vezes pela sua família nuclear. São pessoas vulneráveis e indefesas, muitas vezes exploradas financeiramente. Muitas delas, a maioria, mulheres.

A OMS estima que 80% das vítimas não apresenta queixa junto das autoridades. Não podemos ficar indiferentes. Antes devemos ajudar a denunciar estes crimes. O 25 de Abril, data em que se celebra a Liberdade, também poderá servir para reconhecermos estas formas de violência e não virarmos costas a esta realidade.