“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança, / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”, Luís Vaz de Camões
Uma heresia ou blasfémia, sem perdão, falar de Trump, a partir de uma evocação do “nosso” poeta Luís de Camões? Camões é, aqui, chamado, num tempo em que o Mundo atravessa uma crise profunda e perigosa, por ter sido um grande visionário da mudança, independentemente do ritmo em que vai fluindo em cada momento e da qualidade da mesma.
A escolha recaiu sobre esta quadra muito conhecida, que simboliza bem como todo o soneto, o visionário em Camões, característica tão precisa hoje, para nos ajudar a ler o que se está a passar no Mundo em que andamos todos muito confusos.
A perda de referências
Assim, com o desmoronamento da União Soviética (inícios anos 90, século XX) – o grande marco do fim da guerra fria – perdem-se as referências da existência dos dois mundos, bem demarcados, nos mais diversos parâmetros e aí se encontram os alicerces da transformação radical em curso nas sociedades actuais.
O Ocidente perdeu o inimigo externo, organizado, com que competia no terreno e nas ideias, através da acção e influência. O pior foi convencer-se de que, agora sem inimigo externo, passava a senhor do Mundo e prepara-se, com pouco senso, para o festim.
Surgem “os pregoeiros”, como o filósofo e economista político, Francis Fukuyama, um Doutorado de Harvard e um dos principais assessores de Ronald Reagen, que se notabiliza, primeiro, num artigo “O Fim da História”, uns tempos depois, desenvolvido em livro, quase com o mesmo título, O Fim da História e o Último Homem, onde defende a generalização do liberalismo, a nível planetário, como último patamar da humanidade, de onde, advirá todo o bem-estar das sociedades. Talvez, um dos intelectuais conservadores, mais contestado neste contexto.
Gerou-se, por algum tempo, um consenso neoliberal no Ocidente, esquecendo-se que o apagão do inimigo organizado deixava, no terreno, focos “anárquicos” de inimigos, designadamente naquele espaço ambíguo que, mais tarde, veio a designar-se de Sul Global.
Só que os pregões da grande prosperidade a estender-se a toda a humanidade não tardaram de forma paulatina, mas continuada, a traduzirem-se em desindustrialização das economias avançadas, crescente aumento de desigualdades sociais, taxas de desemprego significativas e, em consequência, um refluxo da qualidade de vida. Aí começam a reproduzir-se e a acentuarem-se as desilusões e os ressentimentos em crescendo vão-se enraizando no seio dos países do mundo ocidental.
Em paralelo, vão-se impondo com impacto notório, em algumas economias emergentes, focos de desenvolvimento, nomeadamente na Ásia com a China na dianteira, que passa a ser conhecida como a fábrica do Mundo. Um parêntesis para anotar que esta “fábrica do mundo” assenta numa reforma profunda da economia da China, promovida por Deng Xiaoping (1978), que acaba por arrastar outros focos de industrialização em países vizinhos e, tudo isto, com muito apoio dos EUA, no quadro do conflito ideológico sino-soviético.
A falência da URSS até veio apaziguar o conflito sino-soviético, o que torna o ambiente ainda mais “caótico” para o Ocidente e novos alinhamentos sociopolíticos e económicos começam a despontar. É o tempo de Gorbatchev e da sua aproximação à China. E o Ocidente organizado, tradicionalmente, começa a desacreditar de si próprio. Afinal, sai ganhador e mostra não ter mãos de suster o barco!
Os sinais de declínio não esperam e, um outro Mundo começa a desenhar-se com o Ocidente a perder o pé, dadas as dificuldades em o acompanhar.
A sociedade americana é a primeira a acusar esta incapacidade de aproveitamento da transformação mundial que lhe foi altamente favorável, apesar de alguns vultos prometedores que apareceram na Presidência do País, como Clinton ou Obama.
A União Europeia, essa, nem se move. Encontra-se desconexa, com problemas estruturais não resolvidos, como a energia, o mercado único e a teia burocrática.
O descontentamento e a desconfiança nas elites levam a uma perda sucessiva de influência dos movimentos e partidos tradicionais, com a esquerda a acusar uma grande queda e ao aparecimento de movimentos radicais que vão congregando as camadas sociais de descontentes.
A questão principal é que esta instabilidade do mundo continua, tem vindo a agudizar-se desde os anos 90, com acontecimentos vários ,como guerras mal resolvidas, exemplos a do Afeganistão e Iraque, o 11 de Setembro de 2001, a crise financeira de 2008, a Covid 19 e as mais recentes guerras, Ucrânia e Médio Oriente.
China, banqueira do Sul Global
Por outro lado, o Ocidente cedo escolhe o novo inimigo a abater – a China – que tinha apoiado. Só que este inimigo é diferente, nada clássico, facetas menos identificáveis, filosofia de longo prazo, grande mestria na definição de objectivos e etapas programadas para os alcançar.
A China, identificada como inimigo Primeiro, não perde o poder de fábrica do mundo, sobe de patamar nas tecnologias, alcança o comando mundial em áreas como as terras raras, veículos eléctricos, baterias, equipamentos para as energias renováveis intermitentes e marca posição relevante na IA, de que a Deep Seek é um exemplo.
E, para além de ter conquistado uma influência invejável, quer nos BRICS quer com a nova rota da seda, muitos estudos recentes apontam-lhe um papel destacado na intermediação financeira mundial, tanto assim que já é designada de banqueira do Sul Global. O Ocidente, para além da China como inimigo externo, tem as suas próprias clivagens internas.
Trump incarna uma das alas de combate distanciada do modelo tradicional e até da sua primeira governação, agora claramente com os grandes magnatas no comando. Não cumpre leis, centraliza ao máximo o poder executivo, ataca a cultura e a ciência, defende a ideia de que a perda de influência dos EUA se deve à falta de comando dos presidentes anteriores e, na política externa, combate a multilateralidade, ameaçando sair de várias instituições multilaterais. Age na provocação, no caos, num entendimento com os movimentos de direita radical e extrema-direita no mundo, sobretudo na Europa.
Trump não é um meteorito, mas um produto da mudança de sociedade, tem vindo a criar a sua teia internacional com outros movimentos/partidos, uns já no poder como Meloni, Orbán, e outros como Le Pen ou AfD, com representação significativa no seu país e no Parlamento Europeu.
Trump usa e abusa do poder mundial dos EUA como grande nação, embora em declínio, mas ainda para durar e tenta federar os vários movimentos radicais pelo mundo. Até onde?!
De novo Camões, agora com Camus
E de novo estamos com Camões, porque na sua linha, “Todo o mundo é composto de mudança”, nos incentiva a ficar despertos e angustiados pela situação crítica que o Mundo atravessa. Um Mundo em grande mudança e de fim incerto.
Em auxílio, recorro ainda a outro grande vulto da cultura, Albert Camus (século XX) que, no seu discurso de Prémio Nobel, disse: cada geração é chamada a refazer o mundo… mas, talvez, a tarefa maior seja evitar que o mundo se destrua. Permitam-me dizer que, no movimento de mudança de Camões, leio: evitar o desmoronamento é algo de fundo, como etapa necessária para refazer o Mundo, de forma sólida, a finalidade última da governação.