Este comentário vem a propósito da leitura do artigo “Le Japon prend un virage remarquable sur le marché mondial de l’armement”, publicado no Business AM Weekend (21/06/25), onde se evidencia, como uma das suas principais conclusões, ter o Japão abandonado o estatuto de nação pacifista e entrado na de actor mundial do mercado de armamento de guerra.

Interessante artigo, pois, referência semelhante encontrara em relação à Alemanha, quando Olaf Scholz, poucos dias depois do início da guerra Rússia-Ucrânia (24Fevereiro 2022), anunciou uma reviravolta sobre a política de defesa (a maior mudança desde a Segunda Guerra Mundial), avançando com um programa de investimento de 100 mil milhões de euros na política de rearmamento e defesa a que muitos media chamaram de “rompimento” com o pacifismo alemão do pós-guerra.

A este propósito, interessante referir que coube a Christine Lambrecht, então ministra da defesa, adquirir drones armados e uma nova geração de aviões bombardeiros que até bombas nucleares podem lançar. De assinalar que Lambrecht, uma activista pela paz, que se aliara ao SPD na década de 80, defendia, então, a proibição da Alemanha enviar armamento para zonas de conflito, marchava nas ruas contra a energia nuclear e pelo desarmamento. Como ministra da defesa, mostrou-se muito orgulhosa por a Alemanha colocar-se como um dos mais poderosos fornecedores de armas à Ucrânia e Israel e um potencial grande comerciante de armamento, no mercado global.

É de pensar se essa “doutrina pacifista”, instalada e imposta à Alemanha, na sequência dos horrores praticados pelo nazismo, foi interiorizado como sentimento nacional ou não passou de uma mera aceitação formal, escondendo aquela parte da direita nazi que nunca se encaixou na democracia, o racismo disfarçado e aquela parte de políticos oportunistas, que, por necessidade de sobrevivência e de subida na vida, mostravam professar o “pacifismo”. Será que, em parte, as forças de extrema-direita de hoje, em acelerada ascensão e consolidação em muitos dos territórios da Alemanha não se alimentam desse passado encoberto?!

Há quem defenda que esta ideia de pacifismo alemão facilitou um status que permitiu à Alemanha Ocidental o mais elevado grau de desenvolvimento, sustentado numa indústria pujante, tornando a Alemanha o país mais importante da Europa.

Coube ao social-democrata Olaf Scholz desferir o golpe no mito do pacifismo alemão, antes várias vezes infringido, designadamente, no processo de desagregação da Jugoslávia.

Hoje, “o pacifismo” a que se obrigara por conveniência ruiu e muitos sintomas do passado da Alemanha estão a ser reincarnados por várias camadas sociais, sob novas roupagens, promovendo-se a remilitarização, no contexto das novas circunstâncias decorrentes das guerras na Europa e Médio Oriente e das tendências em curso de uma nova geoestratégia mundial com abandono do Multilateralismo.

O actual Chanceler Merz tem-se mostrado um grande continuador de Scholz, no campo “do pacifismo”, embora, de forma mais musculada. Logo na apresentação do programa, segundo palavras suas, disse pretender dotar a Alemanha do “exército convencional mais poderoso da Europa” e, numa data posterior, afirma “o exército deve voltar ao centro da nossa sociedade”.

Estas frases dizem tudo sobre a posição agora nada encoberta da Alemanha, aliás, elogiada por muitos dos países-membros da UE e  órgãos dirigentes da União Europeia.

O Japão

O Japão, nos finais da Segunda Guerra Mundial, ocupado pelas tropas americanas foi dotado da Constituição de 1947 que, no artigo 9º, proibia toda e qualquer possibilidade de remilitarização do País: “Nenhuma força terrestre, marítima ou aérea será mantida no futuro, nem qualquer outro potencial bélico”. Claramente, uma renúncia à guerra para “sempre”.

Com este artigo 9º cunhou, de algum modo, uma tradição de pacifismo, imposta em consequência da derrota que culminou na barbárie das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasáqui.

Esta Constituição restringia, completamente, os poderes militares do Japão de forma clara e mais drástica do que se passou na Alemanha.  Por esse motivo, qualquer tentativa de revisão da Constituição carecia de ser habilidosa pelo impacto interno e externo.

O que foi acontecendo um avanço por leituras “alargadas” deste artigo constitucional. Esta mudança de filosofia teve eco com o antigo primeiro-ministro, Shizo Abe, que criou a consigna “contribuição proactiva à paz”, ou seja, a invenção de um caminho de tornear o artigo 9º.

O Japão encontra-se numa encruzilhada. Os seus grandes polos industriais enfrentam situações críticas de alto risco. O automóvel, sem dúvida, a actividade central da economia e vida japonesas, há muito enfrenta uma situação ameaçada no mercado global. Aliás, o Japão, no seu todo, face à época áurea industrial porque passou, atravessa desde há anos um período bem complexo. Com a viragem para o automóvel eléctrico, onde as empresas da China são os grandes actores competitivos no mercado global, a realidade tornou-se crítica para o Japão e também para a Europa que, em nada, fica atrás.

A agravar esta situação aparecem as taxas Trump, com todas as incertezas.

O Japão, com o actual primeiro-ministro, como se deduz do título do artigo referido, está a fazer uma viragem para entrar em força no mercado global do armamento. Esta estratégia, “enroupada” com o conceito herdado de Abe, de contribuição para a paz, visa sobretudo revitalizar a indústria da defesa nacional do país, tornando-a forte com uma aposta em economias de escala.

Não é uma viragem sem riscos sobretudo pela situação demográfica de envelhecimento que o Japão atravessa (carência de mão de obra). É, também, porque terá de disputar fatias de mercado com os seus parceiros e aliados. No entanto, o Japão dispõe de alguns trunfos a seu favor, uma experiência e capacidade tecnológica de alto nível.

Perante uma nova crise, onde recuperar a indústria automóvel apresenta sérias dificuldades, o Japão decide apostar na indústria das armas bem como na energia nuclear, recuperando as centrais nucleares existentes, estendendo a sua idade média de vida e um programa de novos investimentos, de forma à sua produção de origem nuclear atingir os 20% do consumo total de energia eléctrica até 2040, rompendo, assim, com o passado de Fukushima, que imponha o abandono desta indústria.

Dois países com um passado industrial em grande mudança confrontam-se com dois outros, EUA e China, que correm em sentidos opostos e com factores competitivos diversos. A China com os BRICS e o Sul Global em grande disputa com o Ocidente na perspectiva de colocar as instituições mundiais como a ONU, FMI… a funcionarem mais em consonância com os seus interesses e os EUA numa deriva anti-multilateralismo e anti China, apostando numa nova ordem mundial conforme a esta filosofia de Trump.

Quem terá mais sucesso a prazo?! Quem está a percorrer caminho com a bússola mais calibrada?! São as grandes interrogações. O Planeta atravessa uma fase (por quanto tempo!) confusa, de elevado risco, difícil de antecipar. No curto prazo, venceu a indústria da guerra.