“Este não é seguramente o caminho. Porque já sabemos que quando criamos mais entidades é sempre muito difícil depois extingui-las”, disse, em entrevista Isabel Ucha, que lidera a Euronext Lisbon, defendendo um modelo de supervisão, mais ágil, menos complexo e com menos custos, que melhor se adequa à realidade económica portuguesa. “Acrescentar mais entidades de supervisão a um modelo que já é composto por três entidades, é introduzir um nível de complexidade e morosidade nos processos”. Sobre os custos, a Euronext Lisboa lembra que já recaem taxas de supervisão diretas de um valor que ascende a 1.258.125 euros/ano, as quais representam quase 10% dos seus custos anuais. Este valor resulta de um aumento de 40% destas taxas, implementado em 2016. As taxas de supervisão sobre o mercado de capitais foram novamente aumentadas em 2018.
A Euronext Lisbon, enquanto entidade supervisionada pela CMVM, concorda com a proposta de modelo de supervisão que está no Parlamento?
A reforma da supervisão vai no sentido contrário àquilo que nós entendemos que deve ser o modelo de supervisão, porque se afasta das pessoas reais e das empresas reais ao introduzir uma complexidade adicional no processo de decisão, uma morosidade adicional decorrente do facto de haver mais entidades envolvidas, e cria mais imprevisibilidade. As empresas e os investidores precisam de um sistema mais eficiente, mais ágil, mais eficaz e mais atrativo, para se financiarem no mercado, para aplicarem as suas poupanças de formas mais diversificadas e eficientes.
De que forma é que o modelo cria mais complexidade?
Com este modelo de supervisão proposto pelo Governo, em cima das três entidades de supervisão (Banco de Portugal, CMVM e ASF), estão a criar-se mais três entidades. Vamos ter um modelo com seis entidades de supervisão. Vamos passar a ter um CNSF – Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, que vai ter a supervisão macroprudencial; uma Autoridade de Resolução e Administração de Sistemas de Garantia (ARSG) e também o Comité Nacional para a Estabilidade Financeira que é um terceiro fórum de coordenação. As duas primeiras têm autonomia jurídica, administrativa e financeira e portanto vão ter quadros, orçamento, e fontes de financiamento próprias. O Comité é uma entidade mais informal, mas que não deixa de ser uma entidade que tem de ser ouvida em determinado tipo de decisões e que faz a articulação entre os supervisores e o Governo (Ministério das Finanças).
Não conheço nenhum outro país com esta complexidade e profusão de entidades de supervisão.
Defendem um modelo com menos entidades de supervisão?
Tendo presente o contexto em que o mercado de capitais português vive a Euronext entende que a reforma da supervisão financeira deveria inspirar-se em modelos que se pautam pela simplificação, desburocratização, previsibilidade e eficiência.
Falta uma reflexão profunda que não foi feita, sobre a natureza dos problemas que se pretendem solucionar. Reconhecemos que há problemas que é preciso resolver, mas temos de os resolver sem nos desligarmos da realidade da economia portuguesa, da realidade das empresas portuguesas, que são PME, da realidade do mercado de capitais que precisa de ser dinamizado e da realidade do setor financeiro, que está a perder peso na economia. Tendo em conta que estamos no final de uma legislatura, o que gostávamos é que este diploma não fosse aprovado como está, e que se reflectisse melhor sobre o que deve ser a evolução do modelo de supervisão no sentido da maior agilidade e eficácia, da desburocratização. Para criar um modelo mais adaptado à realidade da economia portuguesa e do contexto europeu onde está inserida.
Com a consolidação das empresas financeiras há menos supervisionados para tantos supervisores?
Os bancos estão a consolidar-se em grupos internacionais e a reduzir a sua presença física, a própria Bolsa faz parte hoje de um grupo internacional de bolsas, tudo isto está ser alvo de racionalização, no sentido de haver menos entidades a serem supervisionadas em Portugal, e portanto o que nos parece que faz sentido é a supervisão ir no mesmo sentido. Isto é, no sentido mais ágil, mais eficaz, menos complexa e não no sentido em que está a ir, que é uma regulação mais complexa e com mais custos. Não são só os custos diretos do funcionamento das novas entidades de supervisão, é o custo da complexidade das decisões de supervisão e os custos adicionais para o sistema. As normas regulatórias que regem o mercado, deixam agora de estar exclusivamente no âmbito da CMVM, ou do Banco de Portugal, e passa a haver um nível adicional de supervisão e coordenação.
Acha que estas entidades de supervisão duplicam as que já existem na UE?
Pois. Reconhecendo que houve problemas que era necessário endereçar, fruto da enorme crise financeira, a União Europeia, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o G20, as regras de Basileia, adoptaram uma profusão de novas regras e de novas obrigações de supervisão, que abrangeram de uma forma geral praticamente toda a atividade financeira. Não só a regulação e a supervisão foi muito aprofundada, como se criaram três entidades de supervisão europeias novas. Temos uma entidade europeia para o mercado de capitais, a ESMA; temos uma entidade de supervisão bancária europeia, que é a EBA (Autoridade Bancária Europeia) e temos uma autoridade europeia de seguros. Portanto é neste quadro que não entendemos como é que se caminha neste sentido, porque estamos a multiplicar funções.
Se em cima de tudo isto vamos criar mais entidades de supervisão que vão ter de ser financiadas provavelmente com mais taxas sobre as entidades supervisionadas, a nossa convicção é que estamos a ir longe demais.
Este modelo de supervisão vai comprometer a dinamização do mercado de capitais?
Este modelo de supervisão prejudica o desenvolvimento do mercado de capitais. Esse desenvolvimento do mercado depende de várias componentes, mas não há dúvida que este modelo dificulta a dinamização do mercado.
Às vezes os custos mais inibidores nem são tanto as taxas, mas sim os custos globais do sistema. A complexidade, a morosidade das decisões, a complexidade do quadro regulatório. Tudo isto dificulta essa dinamização. Quanto mais complexo, detalhado e exigente for o quadro regulatório maior é o risco dos emitentes caírem em incumprimento (às vezes até por desconhecimento exaustivo da lei) e isso torna-se num elemento inibidor. O risco jurídico, que muitas vezes não é devidamente avaliado, interfere na decisão de quem quer entrar no mercado ou na decisão de fazer uma operação de mercado de capitais. Se há um maior risco jurídico de uma penalização ou de uma coima, isso pode afastar as empresas do mercado de capitais.
Naturalmente que quanto mais custos, maior complexidade, mais morosidade pusermos nos processos, mais difícil é o caminho do mercado. Ora, numa altura em que precisamos de dinamizar os mercados como forma de financiamento complementar às empresas, sobretudo ao nível da capitalização das pequenas e médias empresas – o que tem sido aliás um objetivo deste Governo – este não é seguramente o melhor caminho. Este modelo de supervisão acaba por ser uma medida contraditória a esse objetivo.
O modelo proposto, até pode fazer muito sentido no papel e na teoria, mas o problema hoje em dia é que os legisladores desligam-se da realidade e das necessidades do mundo real, e essas leis depois não se vão traduzir num resultado positivo para os alvos desta regulação. A prova disso é que os próprios regulados não se revêem neste modelo.
Defende um modelo de supervisor único, ou um modelo de Twin Peaks intermédio até chegar ao supervisor único…
Não tenho uma visão fechada sobre o que deve ser o modelo ideal, essa discussão ficou por fazer, e estamos disponíveis para contribuir para essa discussão se ela surgir ainda. O que temos visto é o caminho que outros países têm feito no sentido de tornar as suas entidades de supervisão mais ágeis.
Há quem diga que este modelo de supervisão proposto pelo Governo é uma antecâmera da criação do supervisor único. O que lhe parece?
Tenho a convicção forte que este não é seguramente o caminho, porque já sabemos que quando criamos mais entidades é sempre muito difícil depois extingui-las. Ter mais entidades não nos parece ser a solução. Posso dizer que gostaríamos que, do debate no Parlamento, resultasse o reconhecimento do reforço que já foi feito no atual CNSF e das funções que ainda podem ser adicionadas a esse órgão, sem a necessidade de o transformar numa entidade com autonomia jurídica, administrativa e financeira. Esse CNSF, com reforço de funções, satisfaz os supervisores e os supervisionados relativamente à coordenação entre autoridades, que foi a grande fragilidade apontada. Isto sem necessidade de ter um órgão formal com um custo associado.
Lembro que houve custos adicionais que foram imputados a todo o sistema, e estamos hoje a pagar um custo mais elevado, quer em termos de regulamentação que está a ser implementada, quer em termos do financiamento das entidades de supervisão, porque esses custos foram aumentados significativamente em 2016 e 2018.
Vão ser imputadas à Euronext mais taxas com este modelo de supervisão?
O que está na proposta de lei não é muito claro relativamente à forma como o financiamento dessas novas entidades vai ser feito. Agora há uma coisa que é certa, o financiamento das novas entidades vem das entidades reguladas. Como é que vai ser aplicado, não sabemos. Não podemos deixar de lembrar que sobre a Euronext, em Portugal, já recaem taxas de supervisão diretas de um valor que ascende a 1.258.125 euros por ano, as quais representam quase 10% dos seus custos anuais. Este valor resulta de um aumento de 40% destas taxas, implementado em 2016. As taxas de supervisão sobre o mercado de capitais foram novamente aumentadas em 2018, com repercussões em todo o ecossistema. Quando comparado o peso que este custo tem com o de outros mercados onde o grupo Euronext tem presença, designadamente França, Irlanda ou mesmo a Bélgica (que tem uma dimensão muito similar), é inequívoco o peso desse custo em Portugal. Mas o que nos preocupa não é tanto as taxas que diretamente pagamos, mas é sobretudo as taxas que as empresas, as entidades emitentes, os investidores e os intermediários financeiros vão ser chamados a pagar, em cima do que já pagam, porque o custo vai ter de recair sobre o mercado.
Artigo publicado na edição nº 1983 de 5 de abril do Jornal Económico
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