No romance “O Processo”, de Franz Kafka, Josef K. é atormentado por uma sensação de impotência, desencanto e frustração perante a longa manus do Estado. Este clássico da literatura deu origem ao adjetivo kafkiano, que descreve, justamente, uma situação opressiva e desconcertante provocada por uma organização burocrática.

O rebaixamento dos cidadãos quando confrontados com a arbitrariedade, prepotência, desproporção e entropia da Administração Pública deu ao Estado um outro contundente adjetivo: o monstro. Mas o monstro já foi um belo príncipe, sobretudo quando a exangue Europa recuperava da destruição causada pelas duas grandes guerras. O chamado Estado providência nasceu no final do séc. XIX, pela mão do chanceler alemão Otto von Bismarck, que introduziu seguros sociais obrigatórios para doença, acidentes de trabalho, invalidez e velhice.

O modelo bismarckiano ainda prevalece em alguns países europeus e foi, provavelmente, o primeiro sistema de bem-estar social moderno. Seria, pois, um político conservador o pioneiro no reconhecimento da necessidade de medidas sociais, por forma a garantir dignidade e proteção aos cidadãos. Bismarck respondia ao crescimento do socialismo na Alemanha, esvaziando o risco de sublevações populares. Mas, curiosamente, deve-se ao socialismo democrático ou social-democracia a expansão do Estado providência na Europa.

O conceito de Estado social europeu, nas suas diferentes declinações (modelo nórdico, bismarckiano, anglo-saxónico…), foi posto em prática após a 2.ª Guerra Mundial. Representou um compromisso político com o bem-estar social e a melhoria das condições de trabalho, que se traduziu em mais direitos civis e laborais, serviços públicos e proteção social. Na altura, a Europa procurava erguer-se dos escombros do conflito e, para isso, contava com a ajuda financeira dos EUA, através do Plano Marshall.

O Relatório Beveridge, elaborado pelo economista inglês homónimo, esteve na base do welfare state europeu, que conheceu a sua primeira versão no Reino Unido pelo Governo Trabalhista de Clement Attlee, a partir de 1945. O Estado social contribuiu fortemente para a reconstrução das economias do Velho Continente, para a reintegração do dilacerado tecido social europeu e para a contenção do comunismo. Pouco depois, com a criação da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) e da CEE (Comunidade Económica Europeia), o Estado social torna-se um princípio basilar do projeto europeu.

O estado a que o Estado chegou

Em Portugal, o primeiro esboço de Estado providência surgiu com o marcelismo. Após 1968, o sucessor de Salazar introduziu algumas políticas para melhorar o bem-estar social dos portugueses. Mas é depois do 25 de Abril que, de facto, se dá a emergência de um verdadeiro Estado providência, com a efetivação de um conjunto de direitos sociais e laborais que tiveram, em 1976, respaldo na Constituição. A criação do SNS, em 1979, garantiu o acesso universal a cuidados de saúde e representou, por isso, um avanço decisivo na consolidação do Estado social. Com a integração europeia, Portugal passou a dispor de capacidade financeira para expandir e modernizar o conjunto de serviços públicos que consubstanciam o atual modelo de proteção social.

É na passagem dos anos 80 para os anos 90 que o idílio com o Estado começa a esmorecer. Numa sociedade com défice de iniciativa privada, atrasos estruturais e profundas carências sociais, o Estado tornou-se omnipresente. A Administração Pública engordou e multiplicou-se em direções, empresas, entidades, serviços… Os benefícios sociais passaram a mercadoria eleitoral, servindo para comprar votos com promessas invariavelmente despesistas. Nascia então o monstro: anafado de estruturas e funções, consumidor ávido de recursos, albergue para clientelas, teia intrincada de burocracia, máquina de improdutividade, desperdício e redundâncias, terreno fértil para negócios pouco claros.

Isto numa altura em que começava a ser evidente a necessidade de reformar o Estado social. Como se veio a confirmar, a globalização económica, os avanços tecnológicos, os fluxos migratórios e sobretudo a inversão da pirâmide demográfica exponenciaram os riscos de insustentabilidade do welfare state europeu. As últimas e convulsivas décadas na Europa – com crises financeiras, forte crescimento das dívidas públicas, perda de competitividade económica e atraso tecnológico – tornaram claro que em muitos países, nomeadamente em Portugal, a riqueza gerada já não é suficiente para alimentar a magnanimidade do Estado.

Depois da crise financeira e da intervenção da troika, Portugal fez um esforço brutal para consolidar as contas públicas. Ora, esse esforço implicou cortes profundos na despesa pública e uma redução significativa do investimento público, conduzindo à inevitável degradação dos serviços do Estado. A manta esticou de um lado e destapou do outro. O Estado está hoje numa relação complicada com cidadãos e empresas, pois não garante serviços públicos de qualidade, não assegura dignidade e proteção aos mais carenciados e não facilita a vida dos cidadãos e a atividade das empresas.

Ir além da simplificação administrativa

Como se viu nas últimas eleições, os portugueses estão manifestamente descontentes com a ineficiência do Estado. A reforma do setor público ganhou uma urgência redobrada e foi assumida como uma das prioridades políticas do novo Governo. É necessário não só assegurar a sustentabilidade do Estado social, mas também melhorar a efetividade dos serviços públicos e preservar a autoridade, credibilidade e confiabilidade das instituições públicas.

Perante as ineficiências da Administração Pública, torna-se imperioso definir em que áreas o Estado deve atuar e ser forte e eficaz. Mas importa também definir em que áreas o Estado se deve abster de intervir, de forma a libertar recursos para a sociedade e a poupar o erário público. Se uma intervenção pública mais assertiva é bem-vinda na construção de habitação, na gestão da floresta ou no funcionamento das infraestruturas críticas, também é verdade que não se entende o quase monopólio do Estado nos transportes coletivos, a relutância em parcerias com os privados em vários setores (como o da saúde) ou a prodigalidade de entidades públicas sem objeto preciso.

Não se trata de reduzir o número de funcionários públicos, cuja percentagem está abaixo da média europeia. Ninguém desdenharia mais médicos e enfermeiros nos hospitais, mais professores nas escolas, mais polícias na rua, mais juízes nos tribunais… Trata-se, sim, de termos um funcionalismo público jovem e qualificado, bem gerido, descentralizado e dotado de meios tecnológicos. Com melhores salários e carreiras podemos atrair talento para o Estado e, assim, aumentar a eficiência e produtividade da máquina pública.

Embora a simplificação administrativa seja de extrema importância, considerando o estorvo que a burocracia representa para cidadãos e empresas, Portugal carece de mais do que um novo Simplex. O monstro precisa mesmo de amigos, e espera-se que o ministro Gonçalo Saraiva Matias seja o seu BFF (best friend forever). Urge empreender uma profunda reforma no Estado, sem que isso signifique reduzi-lo à expressão mínima, descuidando o seu papel central na promoção do desenvolvimento socioeconómico. O que se pretende é um Estado mais eficiente, sustentável e racional, que seja parceiro das empresas e cúmplice dos cidadãos.

No caso das empresas, isto significa processos administrativos simples, serviços públicos expeditos, fiscalidade competitiva e previsível, pagamentos do Estado céleres e justiça diligente. Ou seja, as empresas apenas desejam melhores condições para desenvolverem as suas atividades com autonomia e rapidez.