O fim súbito do USAID tem várias consequências para África. Uma das mais relevantes talvez seja o de criar espaço para o surgimento de novas crises de saúde pública: sem dinheiro, os medicamentos chegam em menor quantidade, há menos pessoas no terreno. Como estão a resolver o buraco deixado por Trump?
A retirada do apoio americano, ou melhor dizendo, a decisão de suspender o apoio financeiro tomada pelos Estados Unidos, é um facto lamentável, mas penso que até seja mais do que isso. Sou presidente da Aliança Global para as Vacinas e, por essa razão, conheço bem este tema. Ora bem, eu discordo em absoluto das razões apresentadas pelo secretário de Saúde norte-americano para suspender os apoios, mas, por outro lado, também procuro não desistir dos Estados Unidos da América.
É por isso que fala em suspensão e não em retirada…
Eles próprios disseram que era uma suspensão, alegando que só retomariam o apoio quando estivessem clarificadas algumas questões relacionadas com a segurança das vacinas. Isto não tem qualquer fundamento científico. Os argumentos americanos foram imediatamente rebatidos por uma das maiores personalidades científicas nesta matéria, o diretor da revista “The Lancet”, Richard Horton. Num vídeo que enviou logo após a decisão, rebateu imediatamente os argumentos apresentados pelo responsável pela saúde da Casa Branca. Dito isto, penso que seja importante, e até justo, sublinhar que os Estados Unidos têm sido um grande doador para a ajuda ao desenvolvimento. É inegável e factual e esse esforço conta. A desintegração da USAID tem muito mais consequências para África e para o mundo, consequências essas que não se resumem às vacinas. Mas isso não muda o compromisso anterior. Ora bem, perante este cenário, eu tenho não só o direito mas tenho também o dever, de comentar o facto de ter sido prometida pelos EUA, concretamente pela anterior administração, uma contribuição de cerca de 1800 milhões de dólares, que não vai acontecer, Não há outra forma de o dizer: é um compromisso falhado.
Como estão a tapar o buraco?
Felizmente, e apesar de todas as dificuldades orçamentais, a Europa deu um passo em frente, o Japão fez o mesmo… e é esse o caminho. Não estamos onde estávamos, mas não ficámos parados a lamentar o problema. Temos nove mil milhões de dólares só para as vacinas, o que revela o compromisso de tantos países e da Fundação Bill Gates. A ajuda americana representava cerca de 13%… mas se formos objetivos… penso que até podemos viver sem este apoio. No entanto, não é apenas o apoio financeiro, é o apoio político e científico dos EUA que fazem a diferença. Sendo uma das potências com maiores conhecimentos em imunologia e vacinas, só para dar dois exemplos, esta voz de tenor era importante.
A parte relativa à ciência salta à vista, mas pode detalhar as consequências políticas para os EUA?
Os adversários dos EUA estão a mobilizar-se contra o chamado norte global. Começo por fazer notar que o sul global mistura realidades muito diferentes e até contrastantes. Há países com um notável nível de desenvolvimento e outros que se enquadram no que, em regra, designamos por países em vias de desenvolvimento. Ou seja, o alinhamento é, por vezes, forçado – e ele é forçado para que passe a ideia de este é o grupo de países do sul que faz frente aos ricos do hemisfério norte. Ao interromper o USAID, o que os Estados Unidos fizeram foi confirmar todas as ideias feitas de que o tal norte só pensa no seu interesse económico. É um autogolo. São anos e anos de diplomacia que, de repente, desaparecem. O mundo tem vários planos e o que esta presidência americana fez é mau para o mundo, é mau para as pessoas que se encontram numa situação de enorme vulnerabilidade. Mas tem um custo para os Estados Unidos, que perdem uma certa centralidade que tem sido chave para o êxito do país. Aparentemente, não estão interessados na ajuda ao desenvolvimento, o que é toda ela uma declaração política espantosa e um erro grave.
Houve algum fator de arrastamento, isto é, outros países que seguiram os cortes de Trump?
Nós estamos muito gratos à Europa, não apenas à União Europeia, mas também a países como o Reino Unido, que consolidou a sua posição, e à Noruega, só para dar alguns exemplos, embora haja outros. A Noruega é um tradicional doador muito generoso, apesar das dificuldades orçamentais.
E Portugal?
Também aumentou substancialmente a sua cooperação.
Para quanto?
Não tenho aqui o número exato, mas o nosso país, à sua escala, é sempre um parceiro de confiança e isto atravessa todos os governos sem hesitações. Desde os anos 80, quando eu era um jovem secretário de Estado da Cooperação, que digo que devemos ser todos do partido africano, e isto vale também para a UE. No entanto, repare que em plena celebração das independências africanas… onde estão as mais altas figuras dos estados europeus? Estão disponíveis para ir a outros países, mas não dão essa atenção a África. Acham que se fazem reuniões com grupos de presidentes de diferentes países, tudo ao mesmo tempo. Não dão sequer tempo para que esses presidentes falem. Então, porque não dizer, com algum carinho, que Portugal, nesse aspeto, é, apesar da sua dimensão económica reduzida e da sua ajuda ao desenvolvimento ser a expressão da sua política económica, muito inferior à de outros países mais ricos…. Portugal é, dizia eu, um país do partido africano. Espero e desejo que isso continue,
Está em Cabo Verde. Como é que a classe política olha para os cortes americanos e para esta atitude europeia?
Estou a dar-lhe esta entrevista a partir da Cidade da Praia. Acabei de ter uma reunião com o primeiro-ministro Ulisses Correia da Silva, e com o Presidente da República, José Maria Neves, e eles deram-me conta do que se passa aqui na África vizinha. Na verdade, Cabo Verde tem sido exemplar também na questão das vacinas. Ora bem, o que me disseram é muitíssimo claro: o alarme instalou-se em muitos países africanos. Este corte americano vai trazer muito sofrimento evitável. Conheço bem e sou amigo dos Estados Unidos, mas acho que isto… não faz sentido.
Além dos riscos para a saúde pública, há uma outra consequência: mais migrantes económicos. É um risco real?
As consequências económicas vão aparecer muito rapidamente e temos de as gerir com coragem. Penso que temos de explicar aos nossos países-amigos africanos o que está a acontecer. A imigração descontrolada é má para todos. É má não só para os países de acolhimento, porque veem sua estabilidade social e até política ameaçada, mas é também mau para os próprios imigrantes, que ficam numa posição vulnerável. A migração ilegal contribui para enfraquecer os direitos dos próprios imigrantes. Nenhum país quer isto para os seus concidadãos. Portanto, é também do interesse dos africanos que haja uma imigração regulada.
Portugal está a seguir uma boa política de imigração?
O exemplo português é claro: precisamos de mais imigrantes, se não houvesse imigrantes a economia parava. No entanto, podemos ter uma política de portas abertas… mas não escancaradas. Se damos a impressão de que a imigração está sem controlo, vamos gerar tensões sociais graves que levam aos piores extremismos. Repare, certos países europeus que, ao longo de décadas, têm sido modelos de pluralismo e de abertura, hoje estão a fechar-se, tendo como pano de fundo o crescimento de partidos xenófobos. Muita atenção a isto.
Portanto, o corte do USAID pode gerar um aumento súbito da pressão nas fronteiras.
Há um diálogo entre Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa. Penso que as decisões sejam bem explicadas, evitando a demagogia, recusando a xenofobia… mas também a demagogia das portas escancaradas. É possível chegar a soluções com equilíbrio… e sublinho a palavra equilíbrio. É o que mais falta hoje em dia em muitas das políticas. Sabe, eu tenho ainda a esperança de conseguir mobilizar fundos que compensem o que falta. O que tem de ser dito claramente é que a posição americana está a contribuir… involuntariamente, é certo, mas está a contribuir… para que aumente o número de crianças que morrerá de doenças perfeitamente evitáveis. Repare, as vacinas são o primeiro ponto de contacto com os sistemas nacionais de saúde. Ora, se há muito menos investimento americano nos sistemas de saúde, há toda uma cadeia de acontecimentos que deixa de acontecer. Quanto tempo aquela criança vai demorar a ver, outra vez, um médico ou um enfermeiro? É trágico.
No meio de tudo isto está a China e a sua política expansionista.
Bom, eu costumo dizer que não devemos ter ciúmes nas relações entre países como entre pessoas. Temos é de fazer o nosso trabalho de casa. Portanto, a Europa tem de fazer mais. Obviamente que, hoje em dia, por causa das questões globais, está a haver aquilo que eu tenho chamado a ‘mobilização do ressentimento’. E estive aqui algum tempo numa cimeira da União Africana, onde falei com cerca de um quarto dos chefes de Estado africanos. O que descobri é que alguns argumentos avançados pela China e pela Rússia contra a UE e os EUA estão a ter algum eco nos líderes africanos. Portanto, se queremos, de facto, manter uma posição relevante em África – que a meu ver é, de certa forma, insubstituível –, temos de estar presentes e estar envolvidos. Temos de estar comprometidos. Toda a gente sabe que há coisas que nós, europeus, trazemos a África que os chineses não conseguem levar.
Tais como?
Os portugueses que estão em muitos países africanos vivem e estão integrados de uma forma muito diferente daquela que os chineses conseguem. Os africanos sabem isso, conhecem isso perfeitamente, mas isto é apenas uma ponte que tem de ser atravessada. Para fazermos isso, temos de ter instrumentos à altura das circunstâncias e uma atitude política inteligente. Deixe-me voltar um pouco atrás, quando referi a tal mobilização do ressentimento lançando pelo chamado sul global contra o norte global. Repare que é uma expressão mal-intencionada. Não se pode pôr entre os membros do sul global um país que é a segunda maior potência global económica, a China. Antigamente, chamava-se Ocidente, agora somos o norte global? É toda uma poderosa agenda política que passa por pequenos engodos. Sem prejuízo de defesa dos interesses de cada país, ou de cada bloco, é natural que existam diferenças políticas e ideológicas, mas já não faz qualquer sentido esta divisão do mundo, que só conduz ao isolamento e empobrecimento.
Já fomos nós, europeus e americanos, em tempos até recentes, a criar muros para, através deles, nos afirmarmos e excluir outros…
Repare, a saúde pública, por exemplo, é um bem global. Não há nada no mundo mais importante do que salvar a vida de mulheres e crianças. Portanto, o que temos de dizer às grandes potências? Estados Unidos, China, mas também à própria Europa? Quando chegam essas questões, temos de cobrar, seja qual for o país, seja qual for o regime político, para atingirmos objetivos que estão ligados à dignidade da pessoa humana. Não conheço nada mais importante no mundo do que salvar a vida a crianças. Vamos agora politizar isso? Não, não pode ser. O Fórum Euro-Africano é um exemplo disto mesmo. Não é tudo, mas é um exemplo de um trabalho que conduz a melhorias concretas na vida das pessoas. A existências destes espaços gera proximidade e alinhamento…. alinhamento dentro do possível. Cria relações, são tomadas decisões, são avaliadas outras possibilidades. Cá está uma situação concreta em que Portugal funciona como plataforma entre a Europa e África.
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