As últimas eleições legislativas deixaram bem evidente que a opinião pública em Portugal está inquieta face às consequências económicas, sociais e culturais decorrentes de um fluxo migratório abrupto e massivo. O ritmo incessante desse fluxo migratório, com influência directa no colapso sistémico em áreas como a habitação, a saúde, o ensino e os transportes, levou o Governo a apresentar, num curto espaço de tempo, a tão polémica Lei dos Estrangeiros. As alterações propostas passam essencialmente pela imposição de umas ligeiras restrições ao agrupamento familiar e por uma tentativa de aliviar a pressão de processos na AIMA.
Após uma fiscalização apressada marcada por evidentes divergências de apreciação entre os juízes conselheiros, o Tribunal Constitucional deliberou e bloqueou as alterações desta lei que visa o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional. Face a acórdão (rebuscado e enfadonho aos olhos de um leitor normal que se preste a lê-lo pacientemente), e ao imediato veto do Presidente da República, vê-se um nítido regozijo entre aqueles que olham para os juízes do Tribunal Constitucional como anciãos infalíveis, guardiões de um texto elevado à condição de dogma intocável, entronizado pela falsa religião civil do humanismo e da igualdade — um rito de encenação que dissimula interesses ideológicos e bloqueia reformas urgentes, servindo jogos de poder num impenetrável emaranhado de normas desajustadas e rígidas.
Em Setembro, lá voltará o assunto ao Parlamento, quiçá proporcionando oportunidade de maior clarificação a todos os partidos que se mostram, aparentemente, interessados em querer regular a balbúrdia migratória em que o país está mergulhado. Até lá, haverá tempo para acalmar alguma animosidade no debate e, idealmente, para moderar alguma ferocidade daqueles que interpretam o acórdão do TC como um merecido “puxão de orelhas” ao governo, ou como um cristalino triunfo da defesa da dignidade humana.
Fica bastante mal aos arautos do regular funcionamento das instituições vir louvar óbvios raspanetes moralistas da parte de alguns juízes que nem disfarçam as suas simpatias ideológicas. É que, nem a Constituição fornece normas objectivas que justifiquem essas sinalizações de virtude, em claro prejuízo da população autóctone, nem o Estado pode abdicar de vigiar as suas fronteiras (e as externas da UE) em favor de um suposto direito à imigração (que também não existe). Um Estado soberano reserva para si o direito de determinar os critérios de admissão de estrangeiros em função da conjuntura económica e social e privilegiando os interesses de cada comunidade política (o seu bem-estar, a segurança interna, o controlo da despesa pública e a coesão social e cultural).
É bom ter consciência de que os juízes do Tribunal Constitucional não são tecnocratas imparciais ao serviço de uma ideia de progresso, nem tampouco a fiscalização da constitucionalidade é uma operação mecânica. A interpretação da lei não é linear, nem funciona como uma reacção química previsível. Acresce que, dada a natureza excessivamente programática e o nível de minúcia das matérias presente na Constituição de 76, fiscalizar a constitucionalidade de uma lei é quase um ritual esotérico. Desde que haja criatividade e vontade de perpetuar determinados interesses, é muito fácil o TC levar à água ao seu moinho, usando as normas, ambiguidades e intenções abstractas a seu bel-prazer.
Foi isso que fizeram alguns juízes, ao sugerirem que a proposta do governo impede a convivência e a união familiares protegidas pela Constituição. Interessante sensibilidade a destes juízes que não se comoveram quando as famílias portuguesas foram forçadas a longos períodos de confinamento em casa, privadas de convívios, impedidas de fazer deslocações entre concelhos e distritos, vedadas nas visitas a hospitais e lares, de momentos de lazer, e até impedidas de realizar funerais dignos ou de manter afectividade normal e regular.
Além dessas tristes recordações da nossa experiência distópica recente, também hoje existe pouca comoção em relação a todos os jovens (e não só) que se separam das suas famílias por não encontrarem uma economia próspera e dinâmica no país em que estudaram. Também não existe comoção em relação a todos os projectos familiares que ficam adiados devido aos preços proibitivos da habitação. E quantas famílias têm de viver com o coração nas mãos devido aos tempos de espera nos hospitais, ou por não saberem quantos quilómetros terão de percorrer no dia do nascimento de um filho? É óbvio que o compromisso com a união familiar inscrito na Constituição é mais um ornamento vazio que só foi sacado da cartola agora para servir uma lamentável encenação humanista numa guerra político-partidária.
Segundo a advertência de Carl Schmitt, a separação de poderes pode ser vista como uma ficção reconfortante, na medida em que a decisão do poder judicial não emerge de um cálculo neutro, mas da vontade soberana de quem interpreta o texto conforme as suas convicções políticas. Um texto constitucional longo e intrincado apenas oferece mais oportunidades para que interesses ocultos disfarcem o jogo de poder sob a capa do direito. Em contextos difíceis como aquele que o país enfrenta agora perante uma inédita onda migratória, a complexidade do texto constitucional continua a dar espaço de manobra ao ilusionismo judicial que intimida os deputados eleitos e passa rasteiras constantes aos trabalhos parlamentares.
No ano da graça de 2025, Portugal é um país amplamente envelhecido, com uma economia pouco especializada e dependente sobretudo do turismo, comércio e fundos europeus. Além de ser um país envelhecido, desindustrializado e com fraca coesão social, sofre também o impacto da saída de jovens autóctones e da entrada massiva de imigrantes de fora da Europa. É sobre esta nova combinação de factores que paira persistentemente a herança programática do pós-Revolução, não só na letra, mas no espírito do colégio de juízes, como se a alternância dos governos tivesse de viver sempre na sombra de uma espécie de executivo fantasma que impõe os caprichos ideológicos de outros tempos passado a todas as gerações vindouras, sejam quais forem os desenvolvimentos da vida nacional e internacional.