Onde termina o controlo democrático das Forças Armadas (FA) e começa a governamentalização? Não é fácil responder a esta pergunta. Pôr almirantes e generais a andar de bicicleta, se lhe apetecer, como Freitas do Amaral sugeriu uma vez, não será seguramente a resposta mais adequada. Infelizmente, este dislate reflete o pensamento perverso de largos setores da elite política nacional sobre o que deve ser uma saudável relação entre civis e militares. Freitas do Amaral pensava numa subordinação humilhante, na subserviência. O debate sobre o tema é contudo mais complexo e profundo.
À semelhança de muitos outros debates intermináveis que ocorrem na sociedade portuguesa, também o do controlo democrático das FA é vítima desses exercícios autofágicos inconclusivos. O tema dilacera-nos. Utilizando a legitimidade conferida pelo voto dos cidadãos, os grupos que têm controlado o poder político procuraram aumentar o seu poder, à custa da redução do poder de outros grupos sociais, numa lógica de soma nula. Não é evidente que esse aumento de poder seja benéfico para a democracia.
A Lei da Defesa Nacional aprovada em 1980 materializou a subordinação do poder militar ao poder civil, e o saudável afastamento dos militares da política. Estabelecia um compromisso formal adequado. Mas, desde então para cá, muitas alterações têm ocorrido, e todas no mesmo sentido: a intrusão abusiva da política nas Forças Armadas feita em doses homeopáticas para passarem despercebidas.
É aqui que reside o problema da governamentalização. Todos concordamos com a subordinação do poder militar ao poder civil, mas discordamos como isso se faz na prática.
Este debate não é de todo despiciendo. Se, por um lado, não existem métricas para a razoabilidade, por outro, há linhas vermelhas que não podem ser pisadas, sem se correr o risco de se subverterem os princípios, a cultura e os valores em que assenta a Instituição militar.
Faz sentido e é conveniente que certas funções sejam geridas de forma conjunta e centralizada pelo Ministério das Forças Armadas. Permite beneficiar de economias de escala, tratando de assuntos que não competem aos militares, mas sim aos políticos: a definição das políticas (armamento, equipamento e outras), o emprego de militares no exterior do território, a definição dos orçamentos, os dispositivos, a programação militar, a assistência social, a saúde militar, o património, as finanças, e muitos outros de natureza política e administrativa. Isto é controlo democrático das Forças Armadas.
Não é controlo democrático a ingerência política em domínios com impacto iminentemente funcional, operacional e sobretudo cultural. Falamos, por exemplo, das nomeações para os cargos da estrutura superior das Forças Armadas, do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) e da transferência do recrutamento para as instâncias do Ministério das Forças Armadas.
A progressiva governamentalização das FA está patente em dois aspetos incontornáveis: nas sucessivas alterações das regras de nomeação dos chefes dos Ramos, afastando as FA da sua nomeação; e no considerável alargamento do leque de nomeações para cargos na estrutura superior das FA, cuja responsabilidade de nomeação e exoneração passaram a pertencer ao ministro das Forças Armadas (já são mais de 15). Já estivemos mais longe da tutela nomear e exonerar os comandantes das brigadas e dos navios. Por este andar, é apenas uma questão de tempo.
Estas alterações não visam aumentar a eficiência e eficácia das Forças Armadas. Visam submeter os nomeados a uma nova hierarquia de lealdades. Os (penosos) dilemas de difícil resolução que daí emergem são perturbadores da coesão e do espírito de corpo necessários ao seu funcionamento. Os chefes militares deixaram de ser os “chefes do sindicato”, parafraseando o falecido General Soares Carneiro.
A consagração no EMFAR das promoções por escolha em todos os postos a partir de capitão, e o regulamento de avaliação de mérito dos militares privilegiando despudoradamente as colocações em gabinetes, em detrimento de cargos de maior risco e exigência, nomeadamente os de comando e de natureza operacional, ilustram algumas medidas que promovem culturas de subserviência e estimulam a burocracia como forma de ascensão na carreira. Seleciona os “alinhados”. É fixe ser apparatchik.
Igualmente preocupante foi a transferência da responsabilidade do recrutamento dos Ramos, que beneficiava da proximidade com os cidadãos, para o Ministério das Forças Armadas. Com essa decisão deu-se uma estocada de morte num sistema que funcionava bem, com os desastrosos resultados conhecidos. A isto associa-se o afastamento deliberado de militares de funções no próprio ministério das Forças Armadas, onde têm sido preteridos a favor de diplomatas de carreira ou de portadores de cartão partidário.
Não são critérios de gestão ou de competência que estão em causa, mas sim de poder. A governamentalização serve a menorização das FA. Estes desenvolvimentos subordinam-se a um plano de longo prazo, cuja implementação necessita de militares domesticados que corroborem a nova ideologia. A impreparação técnica de alguns executantes não nos pode distrair da competência estratégica dos mandantes que o gizaram.
A conjugação da ingerência política com o definhamento das Forças Armadas, reduzindo-as a um papel social insignificante, tem o propósito de moldar as atitudes e os comportamentos dos militares, de modo a aceitarem passivamente as ideologias supranacionais. Forças Armadas residuais e socialmente exauridas ficam mais recetivas para adotarem, num contexto europeu, modelos como o da especialização, dando assim um golpe de morte na(s) soberania(s) do(s) Estado(s).
Os Erasmus militares inserem-se exatamente numa lógica de socialização que crie nos jovens cadetes recetividade intelectual para aceitarem, sem contrariedade e de preferência acefalamente, aquelas ideologias como a única alternativa política razoável para o futuro da Europa, abatendo assim o bastião que mais obstáculos tem levantado à concretização desse projeto federativo supranacional europeu.
Não é por acaso que a defesa é o domínio onde o progresso da integração europeia tem tido menos desenvolvimentos e sofrido mais revezes. Os defensores do projeto não desarmam: “A luta continua”. O que se aplica às FA, aplica-se também a outros setores da sociedade portuguesa.