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Fazer arte é não ser indiferente ao tempo em que vivemos

E a inquietude o mobiliza, a beleza e a crítica à sociedade não lhe ficam atrás. Para Carlos Aires, o mundo é a sua tela. O coração comanda e aponta ao que não podemos deixar de ver. No MACAM, em Lisboa, as suas obras são um apelo à construção de um mundo melhor.
26 Setembro 2025, 15h44

Carlos Aires nasceu em Ronda, no coração da Andaluzia. Ainda não era ‘gente’ e já guardava em si as imagens profusamente barrocas das igrejas andaluzas, a sumptuosidade das tradições, os rituais associados às festas religiosas, as vestes, os gestos teatrais, excessivos. Esse legado visual não tocou então nenhuma corda vital do seu ser. Não gritou “quero fazer disto arte”. Talvez porque não houvesse tradição artística na sua família. Talvez por qualquer outra razão que lhe é desconhecida. Certo é que, no liceu, escolheu ciências. A história da arte e a filosofia chegaram com a entrada na universidade. Nas Belas Artes, em Granada. Seguiram-se a Bélgica e os Países Baixos, onde viveu vários anos. Regressou a Espanha e instalou-se em Madrid, onde criou os Mala Fama Estudios. Sim, para os mais intuitivos linguisticamente, o nome quer mesmo dizer isso: “má reputação”.

O humor é um traço de Carlos Aires. A música habita-o até enquanto dorme. O olhar, esse, é meigo, mas também atento e crítico. Uma das suas ‘especialidades’ é pôr o dedo na ferida para, depois, a traduzir em algo visceral. Ou não fosse ele um artista que acredita mais no trabalho, na perseverança e na investigação, do que na vocação. Tudo temperado com uns “pozinhos de sorte”, diz ao Jornal Económico.

Dizemos nós que não será apenas sorte. Há quem esteja atento ao seu trabalho e lhe dê asas para conquistar os céus. Foi o que fez o empresário e colecionador Armando Martins, que viu na obra de Carlos Aires o rastilho que desejava acender na capela dessacralizada do Palácio dos Condes da Ribeira Grande, coração pulsante do MACAM – Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, inaugurado em março, em Lisboa.

Mas tudo começou por um vídeo de Aires, de 2016, intitulado “Sweet dreams are made of this”, que subverte a violência policial aquando das manifestações anti-austeridade em Espanha. Desconcertante, subtil, incisivo. Um tango ao som de um dos temas mais famosos da banda pop Eurhythmics, filmado no Museo Cerralba, em Madrid, e que integra a coleção do MACAM. A doce ironia e acutilância terão, quiçá, aberto as portas da antiga capela de Nossa Sra. do Carmo – atual “àCapela” Live Arts Bar – à instalação site-specific “Trinity” (Trindade). Aires, qual funâmbulo numa fina corda, alcança nesta ‘Trindade’ um delicado equilíbrio entre a espiritualidade e a brutalidade da guerra. “Balancear beleza e confronto é um enorme desafio, e foi o que tentei fazer nesta obra”, conta Carlos Aires.

“Para quem nasceu na Andaluzia, com toda a carga religiosa que ali existe, é importante não passar a fronteira da irreverência, da provocação gratuita”. Não é isso que procura, porque, diz-nos “é muito fácil provocar usando temas religiosos – e não é esse o meu objetivo”, explica o artista. “A capela está dessacralizada, mas o que eu quero é que as pessoas contemplem e se deixem emocionar ao ver os vídeos [no altar principal]”. E que pensem no mundo que as rodeia. A arte deve refletir o tempo em que vivemos? “Sempre”, afirma Carlos Aires. “Há pinturas de Velázquez, Goya, Picasso que são verdadeiros murros no estômago, mas não é a dureza do tema que lhes retira a beleza. São artistas que criticaram, questionaram, o seu tempo. Ou seja, a Arte deve ser uma ferramenta de questionamento e reflexão”, conclui.

A conversa tem lugar com um ecrã de permeio, mas isso em nada diminui o entusiasmo com que o artista discorre sobre o seu processo criativo. Não entramos em detalhe. Mais do que explicar a obra, ela deve ser vista e sentida. É intensa, emotiva, dura, comovente. Difícil é ficar indiferente. Ao ponto de darmos por nós a pensar que há muitas coleções de arte em todo o mundo a apostar nos mesmos artistas, raramente procurando criadores que não estejam ‘alinhados’ com o mercado. Chapeau a Armando Martins. Pela liberdade com que faz as suas escolhas.

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