Horas seguidas a seguir na televisão do quarto de hotel, pela madrugada dentro, o incêndio na catedral de Notre-Dame de Paris deixaram marcas no filósofo francês Bernard-Henri Levy, que na tarde seguinte falou com o Jornal_Económico, enquanto comia uma barra de chocolate e bebia chá, sobre “Looking for Europe”, o monólogo que já levou a dezenas de cidades europeias e que na noite de 6 de maio passará por Lisboa, no_Teatro Tivoli. Enfrentar a ameaça do populismo é o objetivo de quem aos 70 anos continua a ser um homem de causas.
Escreveu no Facebook, a propósito do incêndio na catedral de Notre-Dame, que tinha o coração gelado perante as chamas, a devastação e as cinzas. Ver aquilo que ardeu pode servir para recordar que tudo o que nos é mais precioso pode desaparecer de um momento para o outro?
Há coisas que julgamos ser eternas, que nos acompanham todos os dias, e que pensamos que acompanharão os nossos filhos, e apercebemo-nos de repente que são perecíveis, que podem ficar em ruínas, como as cidades antigas, como as capitais dos impérios desaparecidos. Isso pode acontecer.
Pode dizer-se o mesmo de outras coisas que damos por garantidas, como a democracia e a liberdade?
É uma boa metáfora. A democracia e a liberdade na Europa são a mesma coisa e temo-las por garantidas, pois fazem parte da nossa paisagem habitual e são elementos tão evidentes quanto o ar que respiramos, mas pode acontecer-lhes o mesmo que à Notre-Dame de Paris. Sem intenções malévolas, por acidente, podem desaparecer.
Aquilo que sucedeu foi um acidente. Consegue imaginar o que aconteceria se fosse possível responsabilizar alguém, como se fosse o Reichstag do século XXI?
Nem quero imaginar. Não posso imaginar.
De qualquer forma, em alguns recantos da Internet surgiram teses alucinadas do envolvimento de muçulmanos ou de judeus, nomeadamente os Rothschild, no incêndio. Isso quer dizer que não aprendemos nada com a História?
Todos esses comentários são marginais e não os quero ter em conta. Vivemos numa época em que tudo pode pegar fogo: a Notre-Dame de Paris, os discursos e as almas. É por isso que temos de ter muito cuidado com tudo aquilo que dizemos.
Após tudo o que viu e ouviu ao longo da digressão do monólogo “Looking for Europe” tem esperança de ficar contente ao ver os resultados eleitorais na noite de 26 de maio?
Sim, pois dei conta de uma coisa. Os populistas gritam mais alto, mas é possível que os europeístas sejam mais numerosos. Não se fazem ouvir, de certa forma são uma maioria silenciosa, mas é possível que sejam mesmo a maioria. Vi-o em todas as cidades por onde passei. Não sei se será assim em Lisboa, mas espero que sim. Em todas as cidades vi multidões consideráveis de europeístas fervorosos, que querem ouvir falar da Europa e querem ver confirmadas as convicções, querem procurar armas intelectuais para melhor defenderem aquilo em que acreditam. Não são pessoas que deixam cair os braços. São pessoas convictas, às quais por vezes faltam argumentos mas nunca falta a fé.
Falta entusiasmo pelos partidos que defendem a integração europeia?
Falta liderança. O problema da Europa é também, como digo na peça, não ter rostos e não ter verdadeiros líderes. Quem é que se bate pela Europa hoje em dia? Com toda a sinceridade, tirando eu, quem é que faz campanha pela Europa? Neste momento encontro-me tragicamente só. Não ouço muitas vozes a juntarem-se à minha.
As sondagens eleitorais mostram-nos uma queda dos democratas-cristãos e dos socialistas e a afirmação dos nacionalistas, populistas e outras forças antiliberais. Pensa que estes podem ter uma dinâmica de coligação negativa?
Claro. Por isso é que estou em campanha e é isso que venho dizer a Lisboa a 6 de maio. Venho dizer aos lisboetas para terem cuidado. Arriscam-se a ficar minoritários numa Europa que já não é o que era.
Temos cartazes na Hungria em que George Soros parece o “porco judeu” da propaganda nazi, mas também posições anti-semitas de um líder de esquerda como o britânico Jeremy Corbyn. O anti-semitismo voltou ou esteve sempre a centímetros da superfície?
O anti-semitismo esteve sempre lá. É um monstro adormecido e de vez em quando, ao sabor das crises, regressa. Não o têm em Portugal, pois estão bem, mas nos países em que as coisas correm mal regressa em força.
A definição de populismo é tão fácil de fazer quanto a de nacionalismo?
O populismo é uma idolatria do povo. De uma fracção do povo que exclui todo o resto, que diz “o povo sou eu e tudo o que não é, não é o povo”. E a idolatria do povo quer dizer que “eu, o povo, tenho sempre razão, tenho sempre a última palavra, digo a verdade, mesmo que defenda a pena de morte, o regresso de Salazar ou a recolonização de Cabo Verde”. O populismo é isso. O populista diz que o povo é soberano, o que é verdade, mas todos os soberanos devem ter limites que os impeçam de ser monarcas absolutistas. Nenhum soberano pode ser idolatrado ou fetichizado.
Todos os populistas são, ou tornar-se-ão, fascistas?
O populismo é uma versão “soft” do fascismo.
Um fascismo de baixas calorias…
É um primeiro escalão. Atenção que o fascismo não está morto. Dizem que ainda não chegámos à Lei Godwin [criada pelo escritor Mike Godwin, estipula que a possibilidade de uma discussão online envolver comparações com Hitler ou o nazismo tende para 100% à medida que se prolonga], mas na peça digo que é bom atingir a Lei Godwin, pois o fascismo não é uma exceção ou uma aberração, é um regime político que apareceu num momento recente da História e que, infelizmente, não tem razões para morrer. Há regimes e formas de governo que aparecem e que têm semelhanças com esse regime. Se for esse o caso, há que dizê-lo.
O Presidente da República de Portugal é um catedrático de Direito eleito depois de ter uma presença televisiva semanal ao longo de anos e que tem o hábito de tirar selfies em todas as ocasiões.
Está a ser popular ou populista?
Popular.
Não há motivos para pensar que uma figura de Estado popular pode tornar-se populista?
São duas coisas diferentes.
Os últimos resultados eleitorais ao longo da Europa fazem crer que o futuro da democracia está em jogo, como nos anos 30?
Sim.
Vê-o na Hungria, na Polónia, mesmo na Itália?
Há um cansaço da democracia. Não reparam nisso em Portugal, mas nas capitais por onde passei vi como os democratas estão cansados e os antidemocratas ousam cada vez mais dizer que o são. Até agora tinham vergonha.
Alguns dirigentes nacionalistas, como Marine Le Pen ou antes dela Gianfranco Fini, têm um discurso pós-fascista. É possível ser pós-fascista?
Pode ser, mas um pós-fascista ainda é um pouco fascista, com franqueza. Desculpem lá, mas alguém que se denomina pós-fascista ainda faz parte dessa história, ainda se encontra nesse paradigma.
A sua digressão levou-o a encontrar-se com Viktor Orbán na Hungria. O que retirou dessa conversa?
Compreendi duas coisas: ele tem medo do Vaticano e da direita liberal europeia. Tem medo de ficar no índice. São duas coisas que talvez sejam hipóteses para o povo húngaro.
Tinha esperança de mudar Orbán?
Penso que não mudamos os homens. Eles é que mudam, e penso que ele já mudou muito. Na juventude foi um dissidente antitotalitário, formado por George Soros, defensor da sociedade aberta. Não irá voltar a mudar, mas por outro lado, como é um homem inteligente, disse-lhe que tinha razão em ter medo do Vaticano e da direita liberal europeia, de Merkel e dos filhos de Giscard d’Estaing e de Chirac.
Faltaram filósofos que conversassem com Hitler e Mussolini nos anos 30?
Houve filósofos que falaram com Hitler, mas não serviu de nada. Quando se está numa fase de mal absoluto não há debate possível. Não é o caso de Orbán, bem entendido. Houve muitos que tentaram com Hitler: Bertrand Jouvenel, Robert Aron, muita gente… Era uma conversa de surdos.
Alguns dos povos que apoiou ao longo da vida, como os bósnios, os curdos ou os afegãos, poderiam ensinar aos povos dos países da União Europeia que têm um tesouro que devem preservar?
O tesouro da civilização? Claro que sim. A civilização é como a alegria. Dizem que reconhecemos a alegria pelo barulho que faz quando se vai embora. Reconhecemos um tesouro pelo barulho que faz quando é reduzido a cinzas. Muitas pessoas passavam por Notre-Dame sem pensarem que era do mais precioso que tinham. E agora tiveram uma noite de terror. Neste espectáculo tento mostrar aos europeus a riqueza deste património.
Nas plateias de “Looking for Europe” tem sobretudo jovens ou pessoas mais velhas?
Há de tudo.
Existe alguma geração específica que pretenda tocar com o seu espectáculo?
Não sou um irredutível defensor da juventude. Costumam dizer que é preciso convencer os jovens, mas penso que é preciso convencer toda a gente. Os jovens e os menos jovens. Não acredito que os jovens tenham razão e estejam mais próximos da verdade.
Sabe que a solução governativa que existe em Portugal é chamada de Geringonça, o que quer dizer mecanismo estranho?
Sei.
O governo socialista, um dos poucos da Europa, tem apoio parlamentar de duas forças: o Bloco de Esquerda e o PCP, cujos dirigentes dizem em entrevistas que não sabem se a Coreia do Norte não será uma democracia. Isso perturba-o?
Perturba-me que o digam e não gosto dessa aliança, mas não se pode dizer que o PCP tenha influência na governação. E isso faz toda a diferença. O que me perturbaria mesmo é se pessoas que se interrogam se a Coreia do Norte é uma democracia estivessem no governo. Como se contentam em apoiá-lo sem fazer parte, estão um pouco como na situação da Frente Popular francesa em 1936, em que os comunistas praticavam aquilo a que chamavam “apoio sem participação”. Isso permitiu a Léon Blum aprovar reformas essenciais.
E isso não abre a porta a que Marine Le Pen dê apoio sem participação a um futuro governo de direita em França?
Sim, mas de qualquer forma digo que um apoio sem participação, que não seja recompensado de outra forma, que não seja um pacto nebuloso, não tem mal em si. Se no futuro Marine Le Pen der apoio a um governo de Sarkozy não é a mesma coisa do que se estiver no governo.
Artigo publicado na edição nº 1986, de 26 de abril, do Jornal Económico
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