Há poucas semanas, o Presidente da República recebeu na sua residência oficial umas dezenas de “influencers”, num “encontro” em que, segundo o Observador, “se falou de moda, humor, novelas e pouco ou nada de política”. Como seria de esperar, o sarau provocou o escárnio da maledicência nacional, de forma talvez um pouco injusta.
Não só é perfeitamente compreensível que Marcelo se escolha rodear de dezenas de jovens esbeltas e prontas a derreterem-se na presença de uma celebridade que cresceram a ver na televisão, como ao convidar para uma ida a Belém gente que tem como principal actividade tirar e publicar “selfies”, Marcelo estava apenas a escolher estar na companhia dos seus pares. Nada mais natural.
Quando li a notícia sobre o “encontro”, lembrei-me de um episódio do podcast Crazy/Genius, dedicado aos “influencers” do Instagram. O apresentador, Derek Thompson, começou por explicar como o Instagram criou um ambiente em que uma pessoa “vender-se” é não só aceitável como também algo cool, algo de positivo.
E à medida que foi crescendo, permitiu aos que nele melhor se vendiam atrair um infindável número de “seguidores” que, como comentou uma convidada de Thompson, Taylor Lorenz, olham para o (ou a) “influencer” e vêem “algo de si próprios” na personagem pública da pessoa que “seguem”. Algumas delas tornam-se tão populares que, através dos produtos que vendem juntamente com a sua “imagem”, se conseguiram tornar milionárias.
No entanto, outra convidada de Thompson, a professora da Universidade de Cornell Brooke Erin Duffy, avisou que “ser visível é ser vulnerável”. Ao se “expor”, argumenta Duffy, o “influencer” não só se põe à mercê da potencial agressividade e rancor típicas das caixas de comentários que se encontram um pouco por toda a internet (bastará ao leitor descer um pouco nesta página para ter uma pequena amostra do fenómeno), como fica dependente de uma actividade que por sua vez depende da capacidade de permanentemente criar essa tal “personagem pública”, que tem de permanentemente apresentar-se da forma que os seguidores esperam dela, simultaneamente gerando neles admiração e conformando-se à ideia que eles (e não o próprio) têm dessa personagem que está a ser exposta.
Como Thompson diz a dada altura do podcast, “ter sucesso como influencer, significa, ironicamente, deixar-se influenciar por outros”. O “influencer” acaba por ser um escravo dessa personagem que criou, o que faz com que seja um escravo do apreço que os seus seguidores têm por si, totalmente dependente e forçado a seguir as preferências de quem supostamente o está a seguir a ele.
Marcelo tem o mesmo problema. Marcelo tira selfies com todo e qualquer português que tenha o azar de se cruzar com ele. Aparece nos jogos da selecção de futebol a comentar em directo o que se passou no jogo. Liga para o programa de Cristina Ferreira. Aparece a dar abraços a vítimas de desgraças. Dá entrevistas ao programa de Daniel Oliveira. Por outras palavras, como as “influencers” que convidou para o Palácio de Belém, expõe-se para se vender, para vender de si uma imagem que se conforma àquela que julga (provavelmente com razão) que os seus “seguidores” (os eleitores) esperam de si. E como os “influencers”, expõe-se à vulnerabilidade inerente à estratégia mediática que segue.
Faço o favor de, sem grande convicção, conceder Marcelo a presunção de que ele não o faz por mero imperativo do ego, por mera “necessidade de ser amado” (como Pacheco Pereira em tempos disse), mas por genuínas considerações políticas. Talvez Marcelo ache que a crescente impopularidade da “classe política” nas democracias modernas enfraquece esses sistemas políticos, privando os seus líderes de autoridade, uma qualidade que alguém possui apenas e só na medida em que terceiros nele a reconhecem.
Talvez Marcelo acredite que a única maneira de superar esse problema – ou seja, de fazer com que os eleitores lhe atribuam, e através dele como seu representante ao sistema político como um todo, essa autoridade – seja tornar-se popular, e que a forma de o conseguir é estar “próximo do povo”, fazer parte “do povo”, fazer “o povo” acreditar que ele é um deles (as pessoas “normais”) e não “deles” (“os políticos”). Foi isso que ele fez como estrela televisiva, e é isso que faz como Presidente.
Só que por muito popular que seja, Marcelo não tem qualquer autoridade, pois aquela que lhe vislumbram é meramente aparente, e só na medida em que ele se sujeita a seguir o ar do tempo. O Presidente e a sua acção não são uma cura para o problema que ele talvez identifique, mas sim um sintoma da doença.
Olhando para este mandato de Marcelo, é fácil ver o padrão das suas intervenções públicas: a maior parte é pura e simplesmente inócua, limitando-se à exibição da sua pessoa (ou melhor, da sua personagem pública) pelas feiras e praias deste país, distribuindo abraços e beijinhos por quem “gosta muito” de “ver o Professor na televisão”. E sempre que se manifesta sobre algo de substantivo, seja qual for o assunto, Marcelo toma sempre a posição que julga ser a da maioria dos “portugueses comuns”, e só se pronuncia de forma crítica sobre algo (a maneira como o governo lidou com os incêndios de 2017, por exemplo) quando – e só depois de – se gerar um certo grau de comoção e insatisfação públicas.
Embora talvez inadvertida, a alcunha de “papagaio” que o senhor das Forças Armadas talvez não tenha atribuído a Marcelo mas que meio país logo julgou descrevê-lo é particularmente apta: tudo o que Marcelo diz é um eco do que “os portugueses” (no sentido que a conhecida filósofa política Teresa Guilherme dava ao termo) dizem nos cafés. Marcelo é um escravo da sua necessidade de ser popular, o que faz com que seja um escravo do instável sentimento público. Por outras palavras, é tudo menos o que Portugal precisava que ele fosse.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.