Tive de comentar, muitas vezes, afirmações de Mário Soares no seu último periodo de intervenção pública. Tive sincera pena de ter de ser acutilante, de ter de denunciar e caracterizar este tipo de intervenções tal qual elas se nos apresentavam. Mário Soares e Freitas do Amaral, a certa altura do seu longo período de intervenção pública, esqueceram o importantíssimo papel que tiveram na fundação e consolidação da Democracia portuguesa e, creio que sucumbindo ao pânico do esquecimento que aflige muitos homens públicos, agarraram, à pressa e sem critério, o papel que lhes daria mais impacto no momento, correndo o risco de hipotecar um passado de substância por um presente sensacionalista.

Temos encontrado De Niro e Meryl Streep em papéis deprimentes, penso eu, pelo mesmíssimo motivo. No caso de Soares e de Freitas, acredito que a história saberá separar o trigo do joio, e serão recordados pela diferença que marcaram, pela coragem que tiveram, pelo protagonismo que agarraram em nome duma democracia de modelo humanista, de liberdade irrenunciável. Assim como recordaremos sempre a Meryl Streep de “O Caçador” ou de “As Horas”, ou o De Niro do mesmo “Caçador” ou de “Taxi Driver”.

Vem isto a propósito da identificação da relevância, e da substância, dos homens e das instituições. O Partido Socialista foi, até há bem pouco tempo, uma instituição credível, confiável, relevante e com o lastro de construção e participação democrática que lhe garantiam a substância que inspira o respeito. Não acho que tenham governado particularmente bem quando foram Governo, mas fizeram-no, geralmente, dentro de regras conhecidas e conformadas socialmente, geriram Portugal sem nunca fazer duvidar a sua pertença política à comunidade dos países que integram as “democracias de estilo humanista ocidental” no plano internacional. Melhores ou piores governantes, foram sempre políticos responsáveis que tiveram o cuidado e a consciência de nunca hipotecar o essencial. E aqui, correndo o risco da crítica e da impopularidade, incluo a governação Sócrates.

A enorme revolução em curso no PS põe em causa todo este passado edificado com esforço, resiliência e sentido público e político. A “tomada por dentro” do Partido Socialista, que começa com a ascenção meteórica dos radicais-chic Galamba, Pedro Nuno Santos, Pedro Delgado Alves e Isabel Moreira, gente burguesa, diletante, sem qualquer contacto com a realidade, sem conhecimento da vida que os obrigue à responsabilidade. Gente que escolheu PS pela questão aritmética, que sonhou o namoro que agora se aprofunda com os amigos extremistas do BE; gente que sonhou um grande partido radical, fraturante, que pudesse ter uma maioria para construir um Portugal novo fundado nos modelos que condenaram à desgraça e à miséria tantos povos pelo mundo fora.

António Costa, a quem não se conhecem ideias, pensamento político ou vocação de Estado, optou por promover estes arrivistas, como forma de os levar a ocupar o espaço que o assusta do PS fundador da Democracia, com forma e substância suficientes para questionar e obstaculizar a gestão despudorada da sua sobrevivência política pessoal.

É assim que chegamos à rendição de uma plateia do PS aos dislates absurdos de Mariana Mortágua. É assim que vemos o Bloco marcar a agenda política e fazer os anúncios das medidas do Governo. É assim que Portugal vai mergulhando numa embriaguez de exagerado ruído comunicacional, num pântano de retrocesso, de radicalismo, de ameaça séria à democracia. Se Mortágua nasceu, viveu e cresceu com o saque, a apropriação indevida, a ocupação e acha orgulhosamente tudo muito legítimo, o PS nasceu e cresceu ambicionando uma sociedade justa, sob o primado da Lei. Assistimos, em Portugal, a algo muito semelhante a ter um dos grandes partidos do centro-direita franceses dominados por Marine LePen e a sua Frente Nacional.

Sérgio Sousa Pinto tem sido a voz resistente do PS que conhecíamos. Tem percurso e ‘gravitas’ suficientes para fazer pensar bem quem ande distraído. José Lello, no seu estilo muito particular, torna públicos desabafos a ter muito em conta. Mas é pouco, muito pouco. Há muitos mais preocupados, descontentes, dececionados; deitarão tudo o que fizeram a perder se deixarem, pela sua ausência, que o PS deixe de estar à altura do Portugal que ajudou a construir. Mário Soares, nesta fase da vida, merecia a mais justa homenagem da sua família política: o regresso ao arco dos partidos democráticos.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.