Escrevi no Diário de Notícias em 1984, num artigo intitulado “TV e iconografia nacional”, quando a RTP ainda detinha o monopólio, SIC e TVI começariam a emitir a partir de 1991: “A televisão tem de procurar responder à enorme responsabilidade que lhe cabe por inerência da posição que ocupa no pequeno universo dos media nacionais, ou corre o risco de se tornar no principal meio de negação da identidade nacional”. O meu temor concretizou-se, infelizmente. Será que ainda é possível falar-se em “identidade nacional” portuguesa? Qual é? A das televisões?
A legislação da televisão exige que os operadores emitam “uma programação que contribua para a formação e informação do público e para a promoção da língua e cultura portuguesas.” A meu ver, os operadores de televisão, não só não estão a cumprir os objetivos da legislação e os respetivos cadernos de encargos, como estão a contribuir para a sua degradação e eventual negação. O mau é mais forte que o bom.
Nos últimos anos, a qualidade geral da televisão foi tomada pela cultura lúmpen dos ‘reality shows’ que amplifica e consolida valores, crenças e práticas sociais e culturais retrógradas e primárias. Não há superestrura cultural promovedora de formação cívica, de ascensão cultural e social através de entretenimento e informação de qualidade. A superficialidade, o amadorismo e a ausência de bom gosto (ética e estética) dominam e esmagam as escassas tentativas de alguns jornalistas, produtores, realizadores, autores, comentadores e outros colaboradores em contribuir para melhorar e atualizar a identidade nacional que é, afinal, uma construção cultural: história, valores, crenças e costumes.
Há três elementos principais na formação da personalidade e de identidades individuais, e, consequentemente, do coletivo nacional: a família (desde logo a mãe, enquanto grávida), a escola, e a televisão. Territórios, acesso a serviços públicos, ambientes sociais, culturais e laborais completam o enquadramento psicossocial. Aos poucos, a internet e, em particular, as redes sociais penetram esta estrutura e estão a desenvolver culturas tribais, muitas delas subterrâneas e apoiadas naquilo a que se chama “truthiness“, coisas que parecem ser verdadeiras, mas que provavelmente não o são, obliterando a diferença entre objetividade/factos e ficção. É um território ainda pouco estudado.
Há semanas, em artigo muito zangado no Diário de Notícias, António Barreto desancou a televisão portuguesa com numerosos exemplos da atual falta generalizada de qualidade. Mais um exemplo. Um dos canais principais disponibiliza aos espectadores a intervenção qualificada de uma cartomante para ajudar a resolver todo o tipo de problemas. Uma mulher lê o futuro dos espectadores nas cartas, logo às 8h30. O meu filho está com más notas, lamenta-se a espectadora em chamada de valor acrescentado. Há muitas pessoas, ditas “mais vulneráveis”, que levam a sério os conselhos da vidente.
O artigo 30.º da Lei da Televisão impõe aos operadores um conjunto de obrigações gerais, entre as quais “a observância de uma ética de antena” consistente, designadamente, no respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos demais direitos fundamentais, com proteção, em especial, dos públicos mais vulneráveis, nomeadamente crianças e jovens, cabendo-lhes “garantir o rigor, a objetividade e a independência da informação”. Será que o vulnerável ministro das Finanças também segue os conselhos da cartomante?
Outro exemplo. Na semana passada, os três canais de televisão nacionais abriram em simultâneo os vários noticiários ao longo do dia com a coroação de um dirigente desportivo. Não houve o frenesim de uma disputa eleitoral, pois o senhor era o único candidato. O espetáculo basbaque durou vários dias. Dedicar a abertura de noticiários, dias seguidos, à coroação de um dirigente desportivo – uma eleição cujo desfecho era conhecido há meses – é rigoroso, objetivo e independente (dos interesses do futebol)?
O dinheiro não explica tudo. As opções editorais e de alinhamento dos noticiários não dependem de mais ou menos dinheiro. Custa o mesmo colocar o futebol no início como no fim do jornal. São opções erradas, dos respetivos diretores, em particular dos diretores de informação – supostamente independentes e protegidos da ingerência dos acionistas e seus representantes – que, segundo a lei, são responsáveis “pela seleção e pelos conteúdos dos diferentes serviços de programas”. São opções nocivas para a sociedade que não contribuem para a prossecução das obrigações dos contratos de concessão da atividade de televisão aos privados e do chamado “serviço público”, expressas no contrato de concessão e no código de ética da RTP e na Lei da Televisão.
Segundo a ERC, o organismo que deve velar pelo cumprimento dos contratos, a Declaração do Comité Permanente da Convenção sobre a Televisão Transfronteiras enuncia a responsabilidade dos operadores relativamente ao conteúdo dos programas. Devem respeitar a dignidade do ser humano e os direitos fundamentais dos cidadãos. É mais do que isso. É o direito fundamental dos cidadãos a acesso a conteúdos nacionais, de entretenimento e de informação, com qualidade, de acordo com padrões de bom gosto, ética e estética – para além de todas as obrigações de promoção do debate democrático, pluralismo, imparcialidade, direitos das minorias, igualdade de género, etc. O que está em causa é a dignidade do Estado e da nação portuguesa.