Escrevi esta crónica ontem, dia de uma pluralidade de eleições nos EUA – para Presidente, lugares no Congresso, governadores estaduais, autarquias e ainda votações em referendos sobre assuntos locais (legalização da marijuana, por exemplo). Não sei, portanto, qual o desfecho, mas espero que Hillary Clinton tenho sido eleita presidente. Se não foi, estamos tramados. E mesmo que tenho ganho, as democracias liberais ocidentais estão em apuros.

Muitos analistas têm afirmado que a eleição americana e outras eleições na Europa, assim como o referendo britânico, fizeram florescer ideias idênticas àquelas que conduziram ao fascismo na Europa entre as duas guerras. Em artigo no Financial Times, Mark Mazower lembra Fritz Stern, historiador fugitivo dos nazis e pioneiro do estudo de história alemã nos EUA. Antes da sua morte este ano, Stern alertara para sinais de um fascismo ressurgente não na Alemanha mas, inacreditavelmente, nos EUA.

Os tempos que correm espelham em vários aspetos aqueles anos terríveis. Talvez o principal seja o da profunda crise das democracias liberais, a perda de confiança de muitos eleitores no parlamentarismo e instituições democráticas, exacerbada pelo xenofobismo e racismo anti emigrante, pelo ludismo anti tecnológico e pela perda de poder económico resultante da globalização. Tudo temas explorados por oportunistas populistas xenófobos e racistas como Donald Trump. Gideon Rachman, no Financial Times, escreveu que parece incrível que este tipo de debate tenha lugar sobre um homem que está a um passo de ganhar a Casa Branca. Mesmo que perca, a sua extraordinária popularidade diz alguma coisa de preocupante sobre o estado mental da população americana, escreve Rachman.

Muita análise sobre o fascismo tem-se debruçado sobre os seus protagonistas: Hitler, Mussolini, Franco. Salazar é muitas vezes referido como “autocrata”, um termo que até parece benigno. Menos tem sido dedicado a escrutinar o que levou tantos milhões de pessoas a confiar na liderança dessas figuras, quantas vezes patéticas, e a aceitar cometer barbaridades que conduziram o mundo à catástrofe – tudo em nome da nação. Na recensão da recente nova biografia de Hitler por Volker Ullrich, o New York Times escreveu: “O que é realmente aterrador no livro de Ulrich não é que Hitler tenha existido, mas que tantas pessoas tivessem estado secretamente à espera dele”.

A perda de confiança na democracia liberal estende-se aos media, instrumento fundamental da liberdade de expressão, que têm sido outro alvo da ira de Trump, apesar destes o terem promovido sem pudor. Les Moonves, CEO da CBS, disse que o tempo dedicado a dar cobertura ao candidato Trump “pode não ser bom para a América, mas é ‘damn good’ para a CBS”. Pelo que não será surpresa que as pessoas percam confiança quando a motivação é esta, escreve a revista Fortune.

Simultaneamente, surgiu com a Internet o novo ecossistema de distribuição de notícias e de “truthinesses”, com o Facebook no centro da teia e os seus 1,5 mil milhões de utilizadores, mais que todos os mass media juntos. O divisionismo e a ausência de debate democrático e de procura do compromisso que caracteriza as democracias começa na Internet. Há quem chame “tweetocracia” a este fenómeno.

Esta separação vai, contudo, para além da net. As pessoas têm hoje a possibilidade de escolher ler apenas as opiniões com as quais concordam. Um estudo realizado pelo YouGov para The Economist revelou uma repartição perfeita entre a confiança gerada pelos media classificados como “mainstream” (New York Times, Washington Post, Huffington Post, CNN, MSNBC) e os media classificados como “conservadores” (Wall Street Journal, Breitbart News e Fox News). A identificação e fé dos eleitores democratas nos media “mainstream” e dos eleitores republicanos nos media conservadores é quase total. Este processo permite prever a intenção de voto com uma precisão de 88%, mais do que qualquer outro – raça, educação e até mesmo registo partidário porque, por exemplo, eleitores democratas que não confiam nos media provavelmente votaram em Trump.

Em 1999, segundo a Gallup, mais de metade dos americanos (55%) tinham muito ou bastante confiança nos media (TV, rádio, imprensa), um valor que pode ser considerado como relativamente baixo. Mas, em Setembro deste ano, a curva descente que então se iniciou bateu nos 32%. A maior parte dos eleitores republicanos não confia (apenas 14% confiam), assim como a maioria das pessoas com idades entre os 18 e os 49 anos.

Este estado de coisas coloca desafios tremendos aos media. Estão esmagados pela Internet, histéricos na procura a todo o custo de resultados, desacreditados tal como as restantes instituições democráticas, desorientados sobre como reconquistar mercado e confiança. Aparentemente, ninguém sabe como fazer. Talvez, à falta de uma solução de mercado, uma saída seja persuadir super ricos como Jeff Bezos (Amazon) a investir nos media (Washington Post, cujo diretor é Martin Baron, ex-Boston Globe) sem a preocupação de perder dinheiro. Mas apenas a garantia de absoluta independência editorial, como Baron afirma ter, pode ajudar a recuperar a confiança perdida. Antes que seja tarde.