Durante o ano de 2016 o dito Estado islâmico, vulgo Daesh, sofreu pesadas derrotas e significativas perdas territoriais, que se cifram em cerca de 50% do território onde exercia a sua influência. Essa notícia poderia, per se, constituir um sinal animador e promissor na luta que o mundo civilizado trava contra o terrorismo de inspiração islâmica. Infelizmente, não é isso que temos verificado.
O movimento terrorista islâmico, pela sua própria natureza interna, reagiu às significativas perdas territoriais registadas mudando a sua forma de atuar e passando a privilegiar, fundamentalmente, a atuação dos chamados “lobos solitários”: aderentes e partidários do extremismo radical, com uma escassa ligação funcional à organização, que atuam praticamente por sua conta e risco ou no quadro de células muito reduzidas.
Em qualquer dos casos, dificultando deveras o combate que não pode deixar de ser travado. Olhando com atenção para as últimas manifestações terroristas que tiveram várias cidades da Europa por palco, percebe-se com facilidade ter sido esse o método utilizado. O que, enfatiza-se e repete-se, complica e dificulta significativamente qualquer estratégia de combate a esse mesmo terrorismo hediondo.
Este combate, todavia, não pode ser descurado. E, conforme já tivemos oportunidade de reiteradamente escrever e afirmar, não é fechando fronteiras e regredindo aos tempos dos Estados fechados que esse combate deve ser travado. Dúvidas houvesse, de resto, e o já longínquo 11 de setembro aí estava para confirmar o que sustentamos. Nenhum Estado era tão zeloso no controlo das suas fronteiras como os Estados Unidos – e apesar disso não evitaram ser atacados no coração da sua capital económica.
Não, definitivamente o caminho não é esse. É exatamente o contrário. As soberanias restantes e sobrantes são cada vez mais interdependentes. E dessa interdependência tem necessariamente de resultar que quanto mais a criminalidade – sobretudo a criminalidade terrorista – se transnacionaliza, mais o seu combate tem necessariamente de se transnacionalizar também.
Órgãos transnacionais de polícia especializada, unidades transnacionais de combate ao crime violento e ao terrorismo em particular, partilha e troca de informações, cooperação internacional em matéria de prevenção do terrorismo e da criminalidade violenta – têm, definitivamente, de passar a fazer parte das agendas políticas europeias, nomeadamente desta União Europeia em acelerado caminho de desintegração. De outra forma, não haverá hipótese de o combate ao terrorismo ter sucesso.
Quando abordava esta temática com os meus alunos de ciência política, recorria com frequência a uma metáfora que, julgo, ilustra na perfeição a relação do terrorismo com os Estados e a comunidade internacional: imaginemos, por momentos, um jogo de xadrez em que os terroristas jogam com peças brancas e os Estados com peças negras. Ora, os terroristas jogam sempre com as peças brancas (têm sempre a iniciativa e a vantagem que isso proporciona) e, além disso, têm ainda a prerrogativa de ditarem e alterarem as regras do jogo, não aceitando as regras existentes e substituindo-as por regras que lhes interessem. Alguém tem dúvidas de quem ganharia este jogo profundamente desigual e assimétrico?
O problema que hoje se nos coloca, todavia, é que começa a ser absolutamente evidente que se quisermos ter algumas hipóteses de vencer este jogo e de fazer o terrorismo recuar teremos, necessária e incontornavelmente, de sacrificar alguns dos direitos individuais que as sociedades democráticas ocidentais já nos outorgaram e que, durante muito tempo, tivemos como dados absolutamente adquiridos. Direitos de personalidade consagrados em várias constituições, direitos humanos com tutela internacional, direitos e liberdades protegidos por lei – de muitos deles teremos de prescindir e a muitos deles teremos de renunciar se, de facto, entendermos e quisermos que o combate ao terrorismo seja uma prioridade dos nossos Estados e da sociedade internacional dos nossos dias.
Coloca-se, então, a questão-chave de todo este imbróglio: de que quantum de liberdade individual estaremos dispostos a abdicar para melhor garantirmos a nossa segurança?
A escolha que nos tempos mais próximos iremos ter pela frente é, não tenhamos qualquer dúvida, precisamente essa – a escolha entre a nossa liberdade e a nossa segurança. Poderá tardar mais ou demorar menos, poderá ser apresentada de uma forma mais rude ou envolta em maiores considerações dialéticas. No fundo, porém, a escolha a fazer pelas sociedades ocidentais (se é que o conceito ainda tem hoje alguma utilidade de conteúdo, que não meramente semântica) é a de encontrar um justo equilíbrio entre as liberdades individuais e coletivas e a segurança dos indivíduos e das sociedades.
Não sendo possível termos ambos os valores e ambos os direitos na sua plenitude, não tenhamos dúvidas que a escolha que mais tarde ou mais cedo nos será colocada é uma escolha penosa. Para a qual, dificilmente, as nossas sociedades se encontram preparadas. Donde, quanto mais cedo se começar a travar este debate indispensável, mais tempo pouparemos e menos vantagem daremos a quem nos quer vir atacar à nossa própria casa.