(Imaginem que um qualquer “amigo” vosso escrevinhou num qualquer caderninho preto o que lhe foram confidenciando, ao longo de décadas de amizade. Imaginem também que, após uns meses longe dos holofotes, esse vosso “amigo” decide voltar às primeiras páginas, publicando o que designou como um “livro” e transformando desabafos necessariamente privados em algo de grotesco, desde logo porque público.

Imaginem, por último, que uma das vítimas desse dito “livro”, que mais não pretende ser que coscuvilhice pura e dura, não é diferente de um Big Brother, apresenta em tribunal uma providência cautelar, com vista a impedir a publicitação de algo que nunca devia ter deixado de ser privado e que um órgão de soberania português decidiu que havia um interesse objectivo subjacente ao dito.)

 

Tudo isto se passou no nosso país,  sendo que os ecos do indeferimento da providência cautelar a que me refiro foram abafados entre as doze baladas, mais um atentado e a expectativa quanto ao estado de saúde de Mário Soares.

Não se trata já, apenas, de nos termos habituado a condescender com repetidas violações ao direito à privacidade, muitas vezes servidas ao jantar, como até somos instados a ter um papel activo nesta mesma devassidão, transformando-se a vida de terceiros num imenso reality show, para o qual não se candidataram. Na verdade, a única diferença entre uma Casa dos Segredos e o livrinho de Saraiva é que este último assenta numa publicidade de aspectos íntimos que os intervenientes nunca autorizaram, reservando-se o seu autor ao papel de Voz, a escolher qual o amigo que fica nomeado.

Poderão existir mil sentenças em tribunal a dizer que o que foi feito é legal mas, creio, nenhuma poderá dizer que foi ético. Porque não foi. Num mundo de Saraivas, os desabafos da vida privada, os disparates que todos dizemos quando estamos entre amigos, são meticulosamente gravados em caderninhos, prontos a saltar para a praça pública quando o delator se sente a perder terreno. E o que o Tribunal decidiu foi que, apenas porque as pessoas visadas tinham uma dimensão pública, podemos saber tudo o que faziam e diziam, como se as paredes das suas casas fossem de vidro.  E, contudo, não são. E, contudo, não devem ser.

O que é certo é que pouco ou nada se discutiu a propósito desta decisão. A voragem destes dias, que se transformam em anos sem darmos por isso e nos cansam sob a aparência de nos divertirem, tende a impedir-nos de reflectir. Quando tudo está ao alcance de um link, um dia teremos de perceber que o alvo podemos ser nós próprios e que poderá ser a nossa vida privada a que corre nas estradas da informação. E, aí, talvez nos lembremos deste dito “livrinho” que nem a memória de mortos respeitou.

(Percebo bem que estamos numa auto-estrada para a abolição das fronteiras mais basilares entre o domínio público e o privado mas, por favor, deixem-me sair.)

A autora escreve segundo a antiga ortografia.