Mário Soares foi o grande político português do século XX. A história vai recordá-lo pelo contributo para a existência de uma democracia em Portugal e pela adesão àquilo a que hoje se chama União Europeia. Mas Soares foi muito mais do que isso. Deixou-nos um legado de coragem, caráter e visão que não tem paralelo em nenhum outro político português contemporâneo.

Primeiro, a coragem e o caráter, que se misturam. A democracia e a liberdade foram fruto do trabalho de muitos, não só de Soares. Mas nem todos lutaram como ele. Durante o Estado Novo, Soares foi sempre um opositor do regime. Esteve com Norton de Matos e Humberto Delgado nas suas investidas em eleições presidenciais. Esteve com os perseguidos pela PIDE, enquanto Advogado. Foi preso doze vezes e deportado para São Tomé. Nunca se rendeu. Exilado em Paris, lutou contra a ditadura a partir do exterior. E depois da marcha de Salgueiro Maia sobre Lisboa, em 1974, regressou para nos meses seguintes pôr um travão às aspirações comunistas de tornar Portugal numa Albânia. Fê-lo com risco próprio. Podia ter sido preso ou fuzilado se as coisas tivessem seguido um rumo ligeiramente diferente. Mas não deixou de o fazer.

Depois, a visão, que, no caso de Soares, também não se dissocia da coragem e do caráter. Devemos-lhe a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia. A adesão permitiu consolidar a então jovem democracia, tendo sido essa provavelmente a principal razão que levou Soares a bater-se afincadamente por ela, contra o parecer de muitos economistas influentes. Mas a visão de Soares manifestou-se também na forma como ganhou as presidenciais contra Freitas do Amaral, que foram provavelmente as eleições mais notáveis da história da democracia portuguesa. Soares avançou não obstante o cenário de vitória improvável que tinha pela frente. E durante as semanas da campanha teve a capacidade de empolgar e aglutinar as pessoas à sua volta. Neste processo, foi à Marinha Grande arriscar-se fisicamente e virar as coisas a seu favor. Em Portugal há liberdade, isto não é Moscovo, disse depois de ter sido agredido. Não é para todos.

Devemos muito a Mário Soares. A liberdade, mas sobretudo o exemplo do que foi a sua luta para a conseguir. No entanto, as primeiras evocações públicas da sua memória motivaram reações díspares. Ouviram-se assobios em estádios de futebol enquanto se tentava respeitar o tradicional minuto de silêncio. Estranho, não? Talvez não muito.

Na verdade, há muita gente em Portugal que nunca gostou de Mário Soares. E que parece ter ficado amargurada com ele para sempre. Os retornados de África, os comunistas e uma certa direita. Os primeiros responsabilizam Mário Soares por uma negociação da independência das colónias que não acautelou devidamente os interesses dos portugueses que lá estavam. Não tenho autoridade para falar da matéria, mas sempre tive a convicção que era difícil conseguir um bom acordo num processo que decorreu com umas décadas de atraso e em que não tínhamos qualquer leverage. Os segundos, os comunistas, nunca lhe perdoaram ter travado os seus planos para o país no PREC. O comunicado do PCP a propósito da morte de Mário Soares, tendo o mérito de não ser hipócrita, é elucidativo. Os terceiros são os que se integram numa certa direita (não seria justo generalizar a toda a direita), talvez aquela que há poucos anos elegeu, num programa de televisão, Salazar como o melhor português de sempre.

Soares nunca pretendeu ser consensual e sempre conviveu bem com os antagonismos. Afinal, fez da sua vida a luta pelo direito a expressá-los. E o respeito democrático que sempre exibiu pelos seus adversários é, em si mesmo, um legado que nos deixa. Obrigado, Mário Soares.