(O habitual disclaimer: uma pessoa que me é muito próxima disse que, quando vê um documentário sobre o Holocausto, se recusa a mudar de canal por respeito. Escrever sobre a morte de quem, aparentemente, se limita a querer (sobre)viver é, mais do que penoso, triste e quase solitário. Com exclusão da reacção ao desaparecimento de algumas figuras públicas, a verdade, contudo, é que a maioria de nós se parece ter habituado à morte, escancarada no meio da sopa ao jantar, sem que se digne a gastar um minuto do seu tempo a reflectir sobre a mesma. Ainda que se repita. Milhares de vezes.)
No dia em que escrevo estas linhas mais cem pessoas desapareceram numa embarcação ao lado da costa da Líbia, desconhecendo-se até a sua proveniência. Não fiz a contabilidade quanto ao número de mortos em idênticas circunstâncias nos últimos meses mas ultrapassarão, seguramente, o milhar, sendo que, em 2016, se estabeleceu o triste record de cinco mil pessoas. Em suma, no ano passado, cinco mil pessoas arriscaram (e perderam) a vida, buscando um mundo melhor e fugindo daquele onde, por acaso do destino, se encontravam. O acto de procurar a vida radicou, afinal, na sua morte, as mais das vezes pela mão de traficantes que, tratando pessoas como mera mercadoria, negligenciaram as mais basilares condições de segurança como forma de exponenciar o lucro. Mesmo os que sobrevivem, por vezes, estarão acorrentados a uma dívida, quase de sangue, aos ditos traficantes que lhes hipotecará a vida e, provavelmente, a transformará numa morte apenas mais lenta.
Nenhum de nós, imagino, consegue perceber o desespero que tem de estar subjacente à decisão de entrar para uma embarcação e fazer uma travessia, sabendo que o mais provável é morrer. A única explicação que encontro é a de uma inabalável fúria de viver de uma forma digna e do desespero de quem convive com a morte a tempo inteiro, sentimentos que, por estarem longe da maioria de nós, nos são estranhos.
Não obstante esse distanciamento, todos temos o dever de saber que o valor da vida humana não se mede – ou não se devia medir – pela geografia. De cada vez que uma notícia destas mortes nos encontra impassíveis não são, apenas, os visados que morrem: é também uma parte da natureza humana. No fundo, cada um de nós poderia ter nascido na Eritreia, na Somália ou no Sudão, países de onde são maioritariamente originários, quase sempre acossados por guerras ditadas por meros intuitos financeiros. Cada um de nós poderia estar a embarcar, neste exacto momento, com fome e movido pelo sonho de uma existência melhor. Dos milhares de corpos que foram, são e serão recuperados no mar, cada um de nós poderia ser um deles.
E, parece-me, ainda que, destes, um único se desloque com intenções de provocar ainda mais mortes, o facto de se terem salvo vidas de pessoas – que nada mais têm do que a si mesmas – dá-nos, pelo menos, a esperança de acreditarmos na essência humana. No limite, importa relembrar a cada passo, é o que somos (quase) todos: pessoas que querem viver.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.