Uma sondagem recente, levada a cabo nos Estados Unidos, revelou que 68% dos apoiantes de Donald Trump (pelo menos antes de as eleições terem lugar) não confia nos indicadores económicos oficiais. À semelhança dessa, um projecto de investigação no Reino Unido, realizado pela Universidade de Cambridge, mostrou que 55% da população acredita que o Governo esconde o número real de imigrantes que vivem no país. Os exemplos podem multiplicar-se até à exaustão e o que eles revelam é uma conjuntura globalmente relevante que seria difícil de prever há poucos anos: a decadência dos números, das quantificações e das estatísticas enquanto pilar fundamental de uma discussão racional acerca dos múltiplos vectores que interessa analisar numa sociedade e, especialmente, enquanto recurso legítimo e autorizado no discurso político.

Na verdade, os factos em si mesmos, bem como as pessoas que os estudam e dominam (os denominados peritos, “experts”) nunca foram tão impopulares; parecem ter sido suplantados, em larga e preocupante escala, pelo populismo e pelo discurso demagógico. Este – com os resultados políticos recentes que conhecemos e com os que estão ainda para vir – contrapõe aos factos os “sentimentos”; contraria a análise quantitativa com o “mood”; fere de morte os números imputando-lhes “frieza”; descredibiliza as estatísticas por serem “impessoais”; desconsidera a realidade a bem da “pós-verdade”. Já aqui descrevi o papel inalienável que jogam as redes sociais e especialmente o Facebook e o Google neste fenómeno (continuam a armazenar “mega data” sem qualquer intenção de divulgarem a utilização que darão à informação).

Mas não é demais notar que a transfiguração do discurso político – nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Áustria, em Portugal e em muitas outras paragens – está a produzir uma espécie de “contra-Revolução Francesa”, empurrando rapidamente o zeitgeist e os processos de tomada de decisão (dos mais pequenos, de relevância micro-social, aos de impacto diplomático e geopolítico global) para longe do século das Luzes – quando, justamente, se desenvolveram as técnicas de recolha e tratamento de informação estatística – e em direcção a uma nova Idade das Trevas. Uma Idade das Trevas digital, sexy e sofisticada, mas nem por isso menos arrimada em sectarismos não científicos e não factuais, antes dependentes de convicções, de pontos de vista e de sensibilidades (e não raras vezes de motivações religiosas). E quando se argumenta com base em “pós-verdades” e “factos alternativos”, deixa de ser possível discernir exactamente onde residem os erros do argumentário do Daesh.

Por cá, o Bloco de Esquerda consegue ter sempre razão. A sua visão assenta em diversos factos alternativos, como a infinidade dos recursos, a conspiração global, a superioridade do socialismo ou a bondade da luta de classes. Depois das bebidas sugar-free e dos iogurtes e do queijo fat-free, temos agora a política fact-free. E o Bloco na vanguarda.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.