É inevitável, por estes dias, falar-se de Donald Trump. A sua entrada estrondosa na Casa Branca é reveladora da sua personalidade egocêntrica e produz o mesmo efeito que os dourados da sala de estar do seu apartamento em Nova Iorque ou os néons dos seus casinos: atrair atenções. Mas esta espectaculosa estreia revela bem mais do que isso. Os primeiros diplomas que promulgou são o preocupante sinal de que está determinado em quebrar alguns dos consensos existentes entre os dois grandes partidos, que há muito definem a política americana.

A sua atitude desafiante e provocadora revela uma disposição autoritária, que parece não reconhecer os limites impostos pela lei, que jurou respeitar, como se constata pela decisão de proibir a entrada nos EUA de cidadãos com passaporte de sete países, já anulada por ordem judicial.

Além desta desvalorização da legalidade, Trump assenta o seu programa político em mistificações, demonstrando pouca preocupação com a verdade, como ficou bem patente na campanha eleitoral. Para o novo presidente americano, contra argumentos não há factos, não se coibindo de distorcer o real para legitimar as suas propostas. Seguindo o guião do político populista, construiu uma imagem cataclísmica da realidade como justificação da radicalidade das soluções que pretende adoptar. Não surpreende que recorra com tanta frequência às redes sociais para divulgar as suas ideias, pois que estas são frequentemente usadas como a versão moderna e globalizada dos libelos de outrora, que passavam de mão em mão, espalhando o boato e a falsidade contra o inimigo.

Trump é, pois, um homem perigoso, o que torna imperiosa a vigilância dos seus actos. Como dizia o Rei da Dinamarca, em Hamlet, “a loucura dos grandes precisa de ser vigiada”, sendo esse o indeclinável dever do poder judicial, da sociedade civil e também do Congresso, embora a acção deste último esteja manietada por uma maioria republicana, que tenderá a agir por fidelidade partidária.

A democracia americana é antiga e sólida, sendo expectável que os  actos presidenciais sejam escrutinados. Contudo, mesmo com essas limitações, o presidente americano concentra consideráveis poderes e os tribunais não poderão travar todas as suas decisões controversas, até porque tal implicaria o risco de os EUA se tranformarem numa república de juízes. Por outro lado, existe a possibilidade de a sociedade civil, com o tempo, se deixar vencer pela resignação, acabando por aceitar como normal aquilo que hoje considera aviltante, ficando a contestação confinada a pequenos grupos militantes desta ou daquela causa.

Porém, a vigilância ao presidente não é suficiente para assegurar a prevalência dos valores americanos. Trump não chegou ao poder pela força das armas, mas pela arma do voto, o que demonstra que o seu pensamento é partilhado por muitos dos seus concidadãos. Assim, a defesa desses valores exige também uma dura batalha no campo das ideias e do debate político, que vença os preconceitos e a visão provinciana do mundo comungada por boa parte dos americanos.

Esse será o mais duro, mas também o mais importante combate a travar por aqueles que acreditam no pluralismo, na tolerância, no respeito pelo próximo e na sã convivência entre os homens sob o império da Lei. Mais importante que a contenção de Trump, será, pois, a aceitação dos valores americanos por aqueles que não partilham deles.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.