Os meus caros amigos perdoem-me que regresse ao tema, mas como (quase) todos têm um certo constrangimento em fazê-lo no espaço público, e porque o edifício institucional democrático vive de um conjunto de equilíbrios pensados constitucionalmente, que não podem desprezar a perceção pública da legitimidade do poder – e nunca o fizeram nas quatro décadas de Estado de Direito Democrático – é pertinente que o tema não seja colocado higienicamente debaixo do tapete.
As quedas de governo no nosso quadro constitucional têm-se baseado muito mais na perceção generalizada de perda de legitimidade política do que através do instrumento constitucional que a prevê: as moções de Censura. Vá, e as moções de Confiança. De facto, das 26 moções de censura levadas a plenário da AR, apenas a de 3 de abril de 1987, da iniciativa do PRD, que curiosamente garantiu oito anos de maioria absoluta a Cavaco Silva, derrubou efetivamente um governo em funções. Com efeito, e não me debruçando sobre as quedas de governos até essa moção de censura vitoriosa, nas quais se percebe um ainda instável funcionamento dos pilares democráticos, as legislaturas que não chegaram ao fim na última década e meia acabaram por sucumbir a um clima de insuportabilidade da própria situação em que se encontravam.
Foi assim com Guterres que, ainda eivado do “negócio Limiano” e da tragédia de Entre-os-Rios, constatou uma mudança de cor que poucos previam no mapa político nacional após as Autárquicas de 2001, fugindo do “pântano” que ele próprio criara; com Santana, cujas trapalhadas e deslizes regimentais deram oportunidade a que Sampaio dissolvesse, em vésperas do Natal, uma Assembleia que suportava um governo com apenas cinco meses de existência; e com Sócrates, a quem não restou alternativa à demissão após ter sido obrigado a pedir ajuda externa, fruto das “traições” dos seus amigos banqueiros e de Teixeira dos Santos, que perceberam que o abismo estava à distância de um passo.
O atual quadro é peculiar: temos um Governo cuja legitimidade político-governativa advém singularmente de legitimidade parlamentar e não, como até então, de legitimidade eleitoral. Esta constatação é, porventura, a parte mais importante deste texto, e não é da autoria deste vosso amigo. Foi Passos Coelho que no recente Congresso do PSD conseguiu, pela primeira vez, concretizar em palavras aquele que é um sentimento de desconforto difuso que perpassa não só pelos agentes políticos como pela generalidade da população.
O que quer isto dizer? Que ao contrário dos governos com legitimidade eleitoral, leia-se “aqueles que ganharam, mesmo que com minoria, atos eleitorais”, este Governo tem de suportar as suas medidas legislativo-programáticas na sua base de acordo parlamentar. E porquê? Porque o PS só está no Governo porque apresentou uma solução “sólida e duradoura” de natureza parlamentar. Caso contrário estaria em funções um Governo de minoria PSD/CDS.
Os governos de minoria só são admissíveis a quem ganha eleições. Assim, uma força ou projeto político pode, e deve, negociar com outras forças representadas no Parlamento as medidas legislativas, conforme as respetivas sensibilidades ideológicas. Das medidas e dos partidos. Mas um partido que não ganhou as eleições só tem essa legitimidade porque encontrou os enunciados pontos de convergência com outros dos derrotados eleitorais.
Não basta que estejam de acordo no Orçamento. Nem em putativas moções de censura ou de confiança. Tem de existir uma esmagadora maioria de medidas em que convirjam. E quando o PS não encontrar suporte no PCP/PEV e no BE para as medidas estruturais que entende promover, como no caso TSU, deve encontrar outras. Sem dramas. Porque, se Guterres, na sua segunda legislatura como acima referi, ficou maculado porque trocou um orçamento por umas rotundas e um chafariz em Ponte de Lima, e tinha legitimidade eleitoral de encontrar maiorias com quem quisesse, neste caso a existência da maioria a priori foi condição sine qua non para a própria tomada de posse.
Se continuarem a existir matérias recorrentes em que o Governo descorda com a extrema-esquerda, e não importa que as mesmas decorram da nossa presença em blocos internacionais, pois o PS já sabia a posição de comunistas e bloquistas sobre dívida, BCE, UE, NATO, and son on quando com eles acordou, ficará seriamente em causa a legitimidade, sempre ela, desta solução governativa. Perpassará novamente pela opinião pública o tal clima de mal estar que se tornará insuportável e que, cedo ou tarde, obrigará à queda do Governo. Se continuarem a não se entender, sublinho.
No próximo artigo falarei de como Marcelo está a baralhar as contas de todos, e sobre as consequências da sua ação política.