Suponho que ninguém com um mínimo de bom senso deixará de considerar lamentável a novela da Caixa Geral de Depósitos. Mas aquilo que, até segunda-feira à noite, parecia  apenas (e não seria pouco) um dos muitos sinais de progressiva degradação da res publica portuguesa, transformou-se de um dia para o outro numa tragicomédia constitucional. Se até então o ministro das Finanças e o primeiro-ministro, fazendo-se de sonsos, sempre poderiam dizer que afinal António Domingues nunca discutiu com Centeno a fuga às declarações de rendimento no Tribunal Constitucional, assim se dando o benefício da dúvida a este último, depois da nota oficial do Presidente da República ninguém se salva. Talvez se salve o Presidente, ao contrário da opinião do PSD e agora também, ironicamente, do PS…

A nota presidencial de terça-feira constitui um documento curioso e inovador na história do exercício dos poderes presidenciais em Portugal. É desde logo o sinal óbvio, basta ler, de que afinal o primeiro-ministro, também gosta de pregar partidas ao seu antigo professor e actual Presidente da República. O célebre “erro de percepção mútuo na transmissão das suas posições”, o que quer que signifique, é a confissão claríssima de que Centeno terá acordado com Domingues a exclusão de declarações de património no TC. Traquibérnia que não podia deixar de ser do conhecimento do primeiro-ministro. E que ambos de forma enrolada (meias verdades, meias mentiras) a omitiram do Presidente da República.

O resultado de toda esta situação é um e só um: um ministro das Finanças descredibilizado politica e eticamente e que só se mantém no lugar “por estrito interesse nacional” e sob escrutínio apertado do Presidente da República. Mas se bem interpretamos a nota presidencial dela decorrem outras ilações. Por um lado, o reforço da tutela presidencial do Governo. Um primeiro-ministro cuja confiança institucional ficou seguramente abalada terá menos margem de manobra junto de Marcelo. O episódio da convocatória do ministro das Finanças para ir a Belém prestar esclarecimentos poderá já constituir esse sinal. Mas, por outro lado, se é certo que o nosso Presidente, no quadro constitucional, não pode demitir ministros (como também não os escolhe), convém não desvalorizar, como alguns fazem, os poderes informais do PR nesse campo. A prova é a de que, hoje, o ministro das Finanças vale muito menos do que valia ontem. E tudo isso por efeito de uma simples nota presidencial.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.