Em artigos anteriores debrucei-me sobre o espartilho de legitimidade em que o atual Governo da República está apertado. Os últimos atos, e o apoio quase incondicional do Presidente da República, em que não se demitiu de promulgar Decretos-lei poucas horas depois de serem aprovados em sede de Conselho de Ministros, além de se deixar enredar no processo das declarações de Centeno à Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD, remetem Bloco de Esquerda e PCP para uma situação de enorme desconforto.
Com um Presidente que aparece, com enorme frequência, como uma das vozes da esfera governativa, a tarefa dos partidos da extrema-esquerda de aparecerem na fotografia como muleta simpática do executivo, porque para os temas desconfortáveis já sabemos que a direita é chamada a votar, torna-se muito mais difícil. Senão impossível.
Ora, se o Governo, que cada vez menos parece concertar posições à esquerda, se lembra de uma medida, e o presidente a apoia antes da mesma ser votada em sede da Assembleia da República ou do Conselho de Ministros, conforme a natureza do diploma, conferindo imediatamente uma pressão pública para que o mesmo tenha o máximo de apoio possível, para que servem os partidos que conferem a maioria parlamentar?
E se as trapalhadas em que Governo e Presidente se enredam, como o caso da Caixa, obrigam BE e PCP a engolir não um mas imensos sapos, colocando-os em clara incoerência, e até desafio, com aquilo que são os dogmas programáticos destes partidos, e décadas de posições no espaço público, a que se deixaram reduzir estes partidos?
Tenho para mim que BE e PCP já terão passado da fase “tudo é melhor que a direita, mesmo que seja o PS a fazer as políticas de Direita”. Relembre-se, no entanto, que tudo o que não esteja na periferia do comunismo conservador do PCP ou do comunismo maquilhado do BE é considerado de “políticas de direita”. O BE e o PCP começaram por um período em que aparentavam ter o executivo na mão para o momento de “qualquer coisa é melhor que a direita”, que expus acima, estando atualmente na ingrata posição de “se deixarmos cair o Governo agora, o PS ganha as eleições com maioria absoluta e lá voltamos nós para o papel de irrelevância prática”.
Ao menos, no momento presente, ainda podem fingir que têm alguma influência na governação. Mas é esse tapete que Marcelo lhes está a tirar. Quem reflita minimente nos acontecimentos destas últimas semanas, meses, verá que o Bloco e o PCP gerem com cada vez maior dificuldade a sua ação política. António Costa, mérito lhe assista que o homem tem arte para estes malabarismos, conseguiu escapar à tutela dos parceiros de ocasião, obrigando-os contudo a manter um apoio oficial. Partidos estes, recorde-se, que impediram Costa de atravessar o obrigatório deserto político após a derrota sofrida nas legislativas de 2015. Repete-se a fábula do homem e da cobra, quando aquele que é ajudado não perde oportunidade de morder aqueles que lhe permitiram sobreviver, mal tenha essa oportunidade.
O que os partidos não esperavam é que Marcelo surgisse a baralhar e dar cartas novas, sendo ainda mais “parceiro” do Governo de Costa do que aquilo que Soares foi na primeira maioria absoluta de Cavaco. A coligação da geringonça já era. A Coligação do momento é a de Costa com Marcelo. Ou vice-versa. Pelo menos até um deles se lembrar de morder o outro. Bom Carnaval!