Só ouvi partes da última entrevista dada por Aníbal Cavaco Silva à RTP a propósito do seu recente livro, portanto, descontem eventuais falhas na minha interpretação. Mas, a referência à sua necessidade de dar a conhecer o papel do Presidente da República e da sua actuação, não estritamente prevista na Constituição da República Portuguesa, deixou-me a pensar. Há por ali intento declarado de “prestar contas ao povo português”, que eu interpreto como uma tentativa de passar uma mensagem e uma imagem de transparência.

Contudo o que se diz e o que se faz nem sempre andam par a par. Vejo mais esta iniciativa como um esforço para limpar as suas acções ao longo dos dois mandatos presidenciais. Afinal, a sua actuação, no mínimo, deixou muitas questões por responder. Não me querendo imiscuir no que a História Contemporânea do nosso país escreverá, a verdade é que esta tentativa me deixou com “a pulga atrás da orelha”, como sempre deixam as pós-verdades de Donald Trump, as tentativas de descrédito das instituições e das pessoas que se questionam unilateralmente, mas das quais fazem parte. Ou até, imagine-se, os apologistas de que em todas as situações se deve fazer uso da Democracia Directa, com inumeráveis referendos Enfim, muitas destas situações produzem em mim elevados níveis de desconfiança.

Em geral, todos nós, cidadãos e eleitores, clamamos por uma maior transparência nos processos de decisão política e nas decisões dos políticos. Afinal, se o Estado somos nós, é a nós que os últimos devem prestar contas. Estes ideais são basilares nas sociedades democráticas dos nossos dias, mas, na prática, como bem se diz no Alentejo, é que “a porca torce o rabo”.

A ideia da transparência no processo decisório, aos mais variados níveis, é sempre apregoada como foco principal e necessário de Estados soberanos, mas, ainda assim, o que quer isto dizer?

Em boa verdade, a ideia de transparência governativa tem sido tida como boa e há vasta literatura empírica a sustentar esta visão, mas há estudos que contrariam esses efeitos positivos e que não podemos deixar de parte. Um conjunto de análises, menor que o anterior, tem apontado para que certos níveis de transparência produzam poucos efeitos positivos ao nível daquilo a que podemos chamar de qualidade da democracia. Por exemplo, identificar as preferências dos deputados não implica uma melhor representação, ou seja, não quer dizer que estas preferências estejam mais alinhadas com o que os eleitores mais desejam.

Tal efeito não é visível, também, em muitos dos estudos relativos à participação eleitoral, isto é, não está fundamentalmente provado que exista maior ida às urnas quando existe uma maior transparência nos processos políticos. Aliás, há estudos que evidenciam que escândalos relativos a situações de corrupção (caso de Portugal) por parte de políticos estão relacionados com uma maior participação eleitoral.

Mas atenção, não quero aqui alegar que menos transparência é melhor para um Estado de Direito. O que quero fazer é reforçar o argumento de que a linha de pensamento previamente apresentada não seja sempre um caminho em linha recta e que o mesmo pode tornar-se perigoso. Há que estar atento a agendas eleitorais, a meias-verdades baseadas em retóricas extremistas que apelem a uma visão a preto e branco da realidade, e que sirvam intentos mais ou menos demagógicos tão prejudiciais ao que se quer, ou deve ser.

As palavras de Zeca Afonso, tão úteis no período de resistência contra o regime ditatorial de Salazar – “Eles comem tudo. Eles comem tudo. E não deixam nada” –, tem hoje outras gradações de cinzento. Na actualidade o cenário não é o mesmo e a transparência dos processos políticos e dos políticos tem muito mais que se lhe diga porque, de certa forma, é mais complexa.           

A autora escreve segundo a antiga ortografia.