Esta semana assinala um ano do início de sucessivos confinamentos com graus distintos que, no cômputo geral, foram para a economia sinónimo de forte estrangulamento. Se recuperar deveria ser a nova palavra de ordem, o mesmo tipo de reticências que conduziram às medidas de austeridade da década passada vão ganhando forma, arriscando-se a converterem-se no maior obstáculo à recuperação pretendida.
Um indicador deste desconforto é a velha discussão em torno do perigo da dívida pública. Aqueles que aplaudem a recente estratégia norte-americana de estímulo orçamental massivo para recuperação da economia são os primeiros a repudiar a mesma atuação para a economia portuguesa por considerarem que o seu único e exclusivo efeito será o endividamento do estado português. Este discurso converte-se paulatinamente em verdade irrefutável e, talvez por isso, o Plano de Recuperação e Resiliência se paute pela timidez a que estamos já habituados. O rumo de recuperação que se esperava inequívoco foi transformado numa árvore com uma multiplicidade de pequenas ramificações.
Sobre a estratégia de recuperação foi questionado pelo jornal Público Luis de Guindos, espanhol, vice-presidente do BCE, que respondeu às questões colocadas com a perspicácia de quem conhece a realidade da economia e das instituições europeias, não descurando as suas relações de força.
Nesta entrevista, Luis de Guindos, cujo âmbito de atuação é a gestão da política monetária, reconhece que o estímulo orçamental deverá ser retirado de forma muito gradual para evitar o desacelerar da recuperação, reforçando que é cedo para discutir a consolidação orçamental, ideia que se articula com a recente decisão de suspender as regras do pacto de estabilidade e crescimento até final de 2022. Defende ainda que o que é importante é “manter condições de financiamento favoráveis”, da dívida pública, entenda-se, sendo possível reforçar o programa de compra de ativos devido a emergência pandémica (PEPP).
Na mesma linha e em sintonia com as recentes preocupações com o regresso da inflação devido ao estímulo Biden e à expectativa de recuperação da procura mundial, recorda que a inflação continua abaixo do objetivo europeu, próximo dos 2%. É clara a sua perceção de que a recuperação assentará na política orçamental e fiscal, amparada por uma política monetária voltada para a resolução do problema de sustentabilidade da dívida pública europeia.
Mas talvez os dois aspetos mais interessantes da entrevista ao vice-presidente do BCE sejam, por um lado, a ideia de que para recuperar não basta subsidiar a despesa corrente, sendo decisivo investir em projetos que aumentem o crescimento no médio prazo e, por outro, que para resolver os problemas de desigualdade, a melhor política social que se pode pôr em prática é a criação de emprego. Com isto, abre o caminho para todo um outro nível de intervenção para a política orçamental e fiscal até aqui repudiado pela União Europeia – o de poder finalmente atuar sobre a economia real.
A crise pandémica permitiu que a política orçamental fosse tolerada na União Europeia em duas frentes. A primeira, na folga permitida pela cláusula geral de escape do pacto de estabilidade e crescimento que pode e deve ser usada para atenuar os efeitos diretos da crise e promover a igualdade, aprofundando a coesão social através do aumento da despesa pública. A segunda, no plano de recuperação Next Generation EU, mais estrutural, que se pretende orientada para a dinamização da economia, gerando crescimento e promovendo o emprego.
A primeira é urgente e será disseminada pelos setores mais vulneráveis da economia. A segunda, requer uma análise lúcida das debilidades económicas de cada economia, que se façam escolhas e que se concentrem as repostas financeiras nessas escolhas. Querer cobrir todos os chavões – Resiliência, Transição Climática, Transição Digital e seus subpontos – num único Plano de Recuperação e Resiliência, sem analisar as vulnerabilidades nem identificar as potencialidades da economia, respondendo a diferentes pressões, arrisca-se a resultar numa pulverização inconsequente das verbas, disfarçada de pequenas ajudas e pretensa repartição por todos e até em falhar, quiçá, a última oportunidade de fazer investimentos de vulto em setores decisivos e assegurar a sua redistribuição através das dinâmicas resultantes.
Um país marcado por duas crises próximas e profundas, em divergência com aqueles que são os seus parceiros económicos de referência, não deve firmar as suas soluções económicas no mesmo tipo de paliativos que o têm condenado à cauda do projeto europeu. Se lhe é dada oportunidade de fazer política, deve agarrá-la e inverter a espiral deflacionista dos últimos vinte anos. Também aqui, parece ser necessário adquirir imunidade de grupo.