Os resultados eleitorais das últimas eleições legislativas na Holanda podem ter gerado algum alívio conjuntural face à eventual vitória da extrema-direita que não se verificou, mas, se considerarmos um tempo mais longo, levantam preocupações acrescidas que atravessam todos os campos políticos. Desde logo, parece claro que a não vitória de Wilders se deu à custa de uma radicalização do discurso nacionalista e anti-imigração do partido de direita, liderado pelo atual primeiro-ministro. Isto quer dizer que parte da agenda extremista vai entrando nos partidos tradicionais e naturalizando no discurso e na prática política. Trata-se de uma estratégia que poderá travar a ascensão da extrema-direita, mas que a prazo provocará uma institucionalização e legitimação da sua agenda.
O outro dado muito preocupante é a derrocada do partido social-democrata que, de uma eleição para a outra, cai de parceiro de governo para uma situação de quase irrelevância política. Assistiu-se, assim, a um processo similar ocorrido com o partido socialista grego. Ironicamente, ambos foram vítimas da política de austeridade que engendraram: um como idealizador e impositor à escala europeia, o outro como executor no seu país e contra o seu povo.
Assim, mais do que a direita – que apesar de ter protagonizado a agenda austeritária vai resistindo a estes embates – é sobretudo a social-democracia que está a sucumbir às ondas de choque provocadas pela austeridade. Este dado não deve causar estranheza, pois se para direita a austeridade é consonante com parte do seu ideário político, já para a social-democracia esta representou desde o seu início um programa contranatura à sua matriz fundacional.
Durante este período não faltaram alertas sobre as consequências nefastas que esta dissonância entre o ideário e o programa político iria provocar na fragmentação eleitoral destas forças partidárias. Apesar disso, líderes, como o Sr. Dijsselbloem, o ainda ministro das Finanças holandês e presidente o Eurogrupo, não só fizeram orelhas moucas aos avisos, como incidiram de uma forma extraordinariamente persistente num programa castigador para uma parte considerável dos povos europeus. O que justificou esta cegueira?
Não é fácil responder a esta pergunta. Podemos, contudo, engendrar duas hipóteses para início de debate. A primeira tem a ver com um desligamento quase completo face à realidade social como contraponto à excessiva primazia em relação ao económico. A social-democracia foi deixando cair o social em detrimento de uma conceção meramente económica da realidade. E, ainda por cima, a adesão unívoca a essa conceção foi-se dando à custa do expurgo de outras perspetivas económicas alternativas. A focagem no primado do económico e, dentro deste, a adesão quase fundamentalista ao neoliberalismo, afastou a política do mundo da vida que, por sua vez, se instalou numa espécie de torre de marfim rodeada de tecnocracia e construída não para servir os povos e o bem comum, mas para responder ao interesse dos países mais poderosos.
E é aqui que surge a segunda hipótese que esboço de um modo muito simples. Tendo vindo a perder a sua base sociológica desde dos anos 80/90, nomeadamente da classe operária que se comprimiu decisivamente, a social-democracia, em países como a Holanda, foi gerindo uma relação ambígua e cínica com a Europa de forma a compensar esse afastamento da base eleitoral. As instituições europeias surgiram como uma nova arena para a defesa dos interesses do povo holandês: das fábricas e das comunidades deu-se o pulo para a esfera europeia na proteção dos vários grupos sociais nacionais. E é neste contexto que a austeridade se tornou numa política apetecível direcionada principalmente para os povos do sul, que supostamente teriam abusado dos países do norte e viveram acima das suas possibilidades.
A austeridade transformou-se assim numa política desenhada para cobrar esses abusos tendo como contrapartida a defesa interna do interesse dos holandeses, que se coligou ao interesse dos alemães e de outros, em oposição ao dos países não cumpridores. No entanto, como demonstrou o resultado eleitoral, tal narrativa – da qual o partido social-democrata holandês foi protagonista e parece ter apostado – não deu certo. Em parte porque, como referimos, esta dificilmente se encaixava no ideário original, acabando por ser visto pelos eleitores como uma traição política. Deste modo, para além de ter deixado cair o social, este posicionamento de alguns partidos sociais-democratas na esfera europeia contribuiu inclusive para comprometer seriamente a réstia democracia das instituições da UE.
Esta dupla descaracterização ajudou, por seu turno, à emergência de novas alternativas políticas e partidárias, com destaque para os Verdes no caso Holandês, que integraram e radicalizaram parte do ideário social-democrata nos seus programas aliando-o a agendas ecologistas e de sustentabilidade social e ambiental.
Estas duas hipóteses sobre o afundamento da social-democracia, a de ter esquecido o social e a de ter contribuído para comprometer a democracia europeia, esgalhadas em poucos parágrafos e que carecem de aprofundamento, identificam duas tendências estruturais que estão associadas e têm de ser revertidas e ultrapassadas. A estas juntar-se-ão muitas mais num debate que deverá ocupar crescentemente o espaço público, e que se espera frutuoso para os próximos tempos.
Na verdade, o pior que pode acontecer seria metermos a cabeça na areia à espera que a tempestade passe. E desenganem-se aqueles que acham que a intempérie vai passar e que o tempo cura e tudo faz esquecer. Não vai ser assim. É mesmo fundamental para a Europa que a social-democracia se reinvente e reconquiste o protagonismo que teve noutros tempos.
Neste contexto, a atual experiência governativa em Portugal significa uma via possível que pode criar lastro em vários países da Europa. Esta experiência demonstra que o caminho da social-democracia não está condenado. Pelo contrário, como se vai depreendendo esta pode transformar-se num campo alargado capaz de potenciar pontes e de mobilizar ligações políticas entre várias forças em torno de uma agenda crescentemente progressista.