Hoje, começa uma nova Europa. Com a entrega em mão em Bruxelas da carta que dá início ao processo de desfiliação do Reino Unido da União Europeia, a União recomeça a reconstrução do projeto de paz e de prosperidade iniciado após a Segunda Guerra Mundial.
No momento em que escrevo não se conhece ainda o conteúdo da carta. Aparentemente, dirá pouco e terá poucas ou nenhumas condições. Depois da bravata, a realidade, ou seja, as consequências funestas de uma separação litigiosa, começa a tomar conta dos negociadores de ambos os lados do Canal. Como disse há tempos a primeira-ministra Theresa May, o Reino Unido poderá ser “Europe’s best friend” se as negociações correrem bem. Vão ter de correr bem.
As últimas notícias vão no sentido da conciliação de interesses, desde logo a aceitação pelos britânicos do papel do Tribunal de Justiça Europeu como árbitro na negociação. Do lado britânico, a mudança de atitude dever-se-á à ação discreta mas eficaz da administração pública (civil servants).
Neste momento, não consigo deixar de recordar a série “Yes Minister” (1980), e a sequela “Yes Prime Minister” (1986), produzidas pela BBC e então transmitidas pela RTP. O ficcional ministro Jim Hacker, depois nomeado primeiro-ministro, apoia-se na ajuda do seu mentor Sir Humphrey Appleby, director-geral do ministério (Permanent Secretary) quando é necessário tomar decisões que afetam todo o Estado. Este consegue, invariavelmente, convencer o governante a aceitar as suas recomendações, umas mais sensatas que outras, mas em geral com o objetivo de encontrar compromissos.
Apesar das queixas e dos muitos civil servants de alta qualidade e elevada especialização que em anos recentes a têm vindo a trocar por empregos no setor privado mais bem pagos, a administração pública britânica continua a ser o exemplo seguido e copiado. Milhares de funcionários públicos de todo o mundo frequentam cursos de formação no Reino Unido.
Fontes citadas pelo The Guardian, revelam que os civil servants estarão a fazer ver aos ministros e deputados que uma saída anárquica, zangada e sem negociação seria extremamente negativa para a economia britânica. E o dano reputacional que o Brexit já criou à União Europeia seria agravado, para além de novas brechas de consequências imprevisíveis.
Alguns dias depois do Brexit, a 29 de junho de 2016, escrevi no DE que a diplomacia da UE não deveria ser vingativa. Escrevi que os europeus, a prosperidade, a paz e a segurança na Europa vão precisar de estadistas e não de vingadores para defender e melhorar a União, para a sintonizar e sincronizar com os cidadãos.
Para além do papa Francisco e de Angela Merkel, não vejo mais estadistas na Europa. Talvez Emmanuel Macron, um europeísta defensor da parceria franco-alemã, e anglófilo por educação, seja capaz com Merkel de criar opinião pública e política favoráveis à reforma da UE e neutralizar o perigosíssimo nacionalismo populista.
O Brexit deverá ser considerado a oportunidade de que a UE precisa para ultrapassar a atual desorientação, ao forçar a concentração das imaginações e a vontade política no sentido de preservar o essencial do ideal europeu: união livre, paz, prosperidade, democracia liberal.
Desde que o ministro das finanças alemão Wolfgang Schäuble – que, recorde-se, poderia ter sido primeiro ministro em vez de Merkel – disse há dias que o federalismo não é para agora, se percebeu que a UE vai adoptar o modelo chamado “a duas velocidades”, um mau epíteto. Outros utilizam a expressão Europa “à la carte” em vez de “prix fixe”, que me parece corresponde melhor ao que vai acontecer. Outros ainda utilizam a expressão “geometria variável”, que também não é incómoda.
Portugal só tem uma hipótese: ficar no núcleo duro, onde estará Espanha. É também a oportunidade para Portugal afastar os populismos de toda a ordem, em particular os mais estridentes, à esquerda, dedicar-se à inovação social e cultural, ao trabalho produtivo e recompensador e atingir o objetivo sine qua non de crescer a mais de dois por cento ao ano.
No final, creio que a Europa sairá reforçada. O Reino Unido é um pilar fundamental da Europa e continuará imensamente ligado à UE nas áreas da política, finanças, economia, cultura, legislação, militar. Além disso, as ameaças exteriores irão obrigar os europeus a persistir na união. A Leste há um líder agressivo e a Oeste há um cowboy enfraquecido, incompetente e comprometido.
P.S. Também no Reino Unido há quem veja no Brexit uma oportunidade para mudar a estrutura constitucional. O antigo primeiro-ministro Gordon Brown escreveu esta terça-feira no Financial Times que agora é o momento de descentralizar o poder, cada vez mais concentrado em Londres, e pensar mesmo num Reino Unido federal.