Ficou célebre a definição de democracia como “governo do povo, pelo povo e para o povo”, constante do não menos famoso “discurso de Gettysburg”, proferido em 1863 por Abraham Lincoln. Ela retrata de forma sintética três aspetos diferentes de um mesmo princípio: o povo é o titular da soberania; é o povo que governa, ainda que através de representantes eleitos; esses governantes devem exercer a sua função em prol do bem comum.

Bastante menos conhecida é certamente a afirmação de Norberto Bobbio – um reputado politólogo italiano – segundo a qual, já em finais do século XX, a definição de Lincoln se tornara insuficiente. No contexto mediático emergente, os eleitores passaram a exigir que a democracia fosse também o governo “à vista do povo”.

No fundo, o povo deveria juntar às suas prerrogativas democráticas mais antigas o direito a assistir, ao vivo e a cores, de preferência em direto, ao funcionamento do sistema de governo. À opacidade e ao segredo, sucederia uma nova era de transparência e publicidade.

Tal como sucedera com os cânones antigos da separação de poderes, esta transparência constituiria um antídoto suplementar contra o abuso de poder e, sobretudo, contra as tentações em que os governantes, feitos de carne e osso, acabam sempre por cair. Em particular, a transparência impediria que os eleitos se desviassem dos caminhos do bem comum, governando em benefício próprio, da família, dos amigos e correligionários.

A ideia era em si mesma muito apelativa. O escrutínio sistemático da ação governativa e da vida dos políticos levado a cabo pelos meios de comunicação social tornou-a tão incontornável que os próprios sistemas de governo – por via constitucional ou legal – passaram a facilitar-lhes a tarefa: os arquivos abriram-se; muitos documentos tornaram-se de acesso livre; impuseram-se obrigações de fundamentação; o debate público é introduzido em diversos processos decisórios; estabeleceram-se incompatibilidades e impedimentos; os políticos passaram a ter de revelar o seu património; criaram-se registos de interesses; instituíram-se entidades para fiscalizar os dinheiros dos partidos; criaram-se comissões de ética; etc.

Numa palavra, os sistemas políticos passaram a incorporar a desconfiança que a generalidade dos eleitores tinha relativamente aos seus representantes. Como resultado, a desconfiança transformou-se em certeza. O povo não gostou daquilo que viu e que, a um ritmo cada vez mais alucinante, continua a ver todos os dias, numa sucessão de pequenos e grandes escândalos.

Solução? Mais transparência, mais umas quantas incompatibilidades, mais rigidez nalguns impedimentos, mais comissões e órgãos independentes, mais códigos de conduta e alguns manuais de boas-práticas, para variar. Enfim, inúmeros titulares de cargos públicos são literalmente afixados em páginas oficiais, com nome e CV completos, património e rendimentos, como se fossem manequins em montras de centro comercial.

É um ciclo vicioso que só tem um fim: a dicotomia populista entre “eles” ─ a elite dos políticos corruptos – e “nós” – o povo puro, incompreendido, que não se sente representado pelos políticos ditos tradicionais e, por isso, se dispõe a seguir o primeiro líder carismático que se apresente a eleições.

É um absurdo insistir na mesma receita, que apenas afasta pessoas qualificadas da vida pública. A transparência é antes de mais garantida pela liberdade de expressão e pela função de investigação e denúncia da comunicação social. O que falta é coragem para redignificar o estatuto dos titulares de cargos públicos, incluindo o regime remuneratório. O que falta é determinação para substituir a manta de retalhos que vigora nesta matéria ─ com leis feitas e alteradas por medida, em causa própria, para responder a este ou aquele caso mediático ─ por uma legislação simples e coerente.

A natureza humana é o que é. E as boas leis não fazem as pessoas boas. Mas ajudam muito boa gente a não cair em tentação.