(Marx escreveu que a história se repete, pelo menos, duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Discordo. A repetição de uma tragédia, por menor que possa ser, nunca resultará, apenas, numa farsa. Manterá a essência de tragédia, a que se associa o fenómeno da duplicação. Vinda da Polónia e confrontada com as imagens do Holocausto, não deixo de pensar no fenómeno da banalização do mal e de que como foi possível chegar-se ali, perante a imperturbabilidade de muitos. Vejo o alegado referendo na Turquia ou as declarações de Trump, que sendo erráticas por natureza, não deixam de conter mensagens de puro ódio e interrogo-me amiúde se esta nossa complacência, muitas vezes escondendo uma inegável hipocrisia, não levará a resultados idênticos aos que já renegámos. Às vezes, o humor não basta. Às vítimas da Segunda Grande Guerra, claramente, não bastou. Mas, diga-se, nem sempre de tragédias colectivas se trata. Há dramas individuais, cujo ódio que lhes está subjacente apresenta o mesmo carácter de repetição e que merecem, do mesmo modo, a nossa atenção. Diz-se, muitas vezes, que se pode morrer de amor. Outra mentira: ninguém é morto por amor, já que o homicídio é sempre um acto de ódio.)
Ilídia Macedo era advogada no Funchal, tinha 36 anos e um filho menor. As suas fotos, colocadas numa conhecida rede social, mostram uma mulher bonita, plena de vida e de sorrisos, tornando-se difícil a quem as vê consciencializar-se que não está entre nós. Morreu, alegadamente, às mãos do ex-namorado, num cenário de horror em que o seu sangue foi usado para se escreverem as derradeiras mensagens. Será, porventura e enquanto escrevo estas linhas, a última vítima conhecida de violência doméstica, claramente assumida enquanto tal, desconhecendo-se outra motivação subjacente ao crime que não a de ter posto fim à relação. Para que a morte de Ilídia Macedo e de todas as outras vítimas não se limite ao mero cabeçalho de jornal importa tirar daqui uma lição que não se restringe à moldura penal. Numa época de coisificação das pessoas, talvez seja tempo de voltarmos ao básico e se colocar, também no ensino, a tónica na dignidade da existência humana e na liberdade de autodeterminação, quer colectiva, quer, especialmente, no plano individual.
Representativa de um ódio que se disfarça de amor, a violência doméstica tem de parar e não pode deixar de merecer o nosso repúdio, para além da mera espuma do choro imediato. Quando não pela mera solidariedade, por uma razão egoísta: o sangue dos outros um dia pode ser o nosso.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.